terça-feira, outubro 11

Cotidiano

Sentado, só de cueca, em frente ao computador, lia o texto original da peça "Happy Days"¹, que recebera, da cunhada, por e-mail.
Mão direita repousando no ratinho branco-morto e perna esquerda, impulsionada pelos pés na ponta dos dedos, balançando, num sobe-desce frenético, que fazia até o monitor chacoalhar.
Seu tronco curvado, como se em Notre-Dame, mantinha os olhos a poucos centímetros do monitor.
A boca roía, pouco a pouco, as unhas e cutículas dos dedos de sua mão esquerda.
Ao lado do teclado, um cigarro queimava solitário e, na caixinha de som do computador, uma voz desafinada cantava "That there, that's not me. I go where I please, I walk through walls, I float down the Liffey. I'm not here. This isn't happening. I'm not here. I'm not here"².
Tirou o dedo dos dentes para pegar o cigarro. Um trago profundo, de olhos fechados. As cinzas caíram sobre o teclado, mas ele não ligou. Devolve o cigarro ao cinzeiro, e o dedo aos dentes.
O relógio marcava três horas.
Daniela acorda para o xixi da madrugada. A cabeça gira, dói, pesa, pressiona, puxa, empurra. Ao se levantar, Daniela chuta uma garrafa de cerveja, já vazia. Não percebe a luz do monitor vindo da sala, e só o vê no computador quando sai do banheiro, em direção a cozinha.
Desfilando pela casa somente de regatinha branca, passa por ele, mas ele não tira os olhos do monitor. Sente ela passar, apenas e só.
Ela abre a geladeira, pega mais uma long neck, que abre com o abridor - nunca conseguiu girar a tampinha. Em uma golada, dada com gosto, vai metade da cerveja que tinha na garrafa, para passar a dor de cabeça, para tirar a secura da boca. Pega outra, para ele, que também é aberta com o abridor, e volta para a sala. Deixa a cerveja dele ao lado do teclado e tira o cigarro do cinzeiro. Dá o trago final do cigarro, apaga no cinzeiro e, calmamente, acende outro. Antes de colocar o cigarro no cinzeiro, dá uma nova tragada, essa mais forte, mais prazerosa.
Ele não esboça nenhuma reação a ela.
Ela passa a mão calmamente nos cabelos dele enquanto dá mais um gole na cerveja. Ele para de balançar a perna por alguns segundos, pega o cigarro do cinzeiro e traga com gosto.
Ao colocar o cigarro novamente no cinzeiro, antes de pegar a garrafa de cerveja, ele abraça a coxa direita dela e a aperta suave e carinhosamente, por poucos segundos. Quando ele a solta, ela já terminou de tomar a cerveja.
Ela então gira o corpo sobre o calcanhar direito e volta para o quarto.
Ainda bêbada, já deitada, ela começa a sentir seu corpo com as mãos. Mãos no peito, na barriga, no clitóris, até que arrisca uma tentativa de masturbação. Mas acaba dormindo antes de gozar.

1 - Peça de Samuel Beckett, escrita em 1961. Nome em português: Dias Felizes.
2 - Trecho da música "How to disappear completely", do Radiohead

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