terça-feira, maio 26

Confortáveis

Ela estava com vontade de matar alguém. Uma morte lenta e dolorosa, mas ainda assim, extremamente violenta. Saíra de uma reunião tão estressante, que Buda algum teria mantido a calma e o sorriso falso no rosto da forma como ela conseguiu. Claro que a vontade de matar era pura figura de linguagem, mas certamente a necessidade pelo cigarro, não. Como pode algum cliente interno se fingir de burro de forma tão exacerbada como aquele calhorda fez, só para ganhar tempo, para disfarçar a total incompetência para finalizar ou ao menos dar um mínimo de andamento ao projeto? Ou, pior, como uma pessoa tão burra como ele, caso não estivesse fingindo, ainda conseguia um emprego? Desceu correndo pelas escadas. Não aguentaria ficar esperando o elevador.

No térreo, saiu pelo estacionamento. Não queria ficar de conversa com ninguém. Só queria fumar. Acendeu o cigarro, deu a primeira e deliciosa tragada, que a fez sentir a nicotina correr por suas veias, e sentiu o celular vibrar em seu bolso.

“Oi, Sra. Cassia.”

Caralho! Não era possível! Não era possível! Não era possível! Como esse canalha consegue? A raiva e a frustração pela reunião se misturaram ao êxtase do momento que o cigarro trouxe junto com aquele singelo e certeiro “oi” e seus olhos se encheram de lágrimas. Canalha safado! Como ele consegue ser tão certeiro e sempre mandar a mensagem na hora que ela mais precisa? Fosse ela paranoica, teria certeza que estava sendo seguida.  Mas além de não ser nada paranoica, ela sabe que ele não faria esse tipo de coisa. Respirou fundo.

“Oi, Caio. Como você consegue?”

Eles se conheciam desde a infância. Seus pais trabalhavam juntos desde a juventude e eram tão amigos que não só ela é afilhada do pai do Caio, como ela não se lembra de ter ficado uma semana completa, ao menos até o final da adolescência, sem que visse seus padrinhos – e o Caio, consequentemente. Estavam sempre na casa um do outro. Eram quase parentes. E, assim, durante toda a adolescência, enquanto Caio se transformava em um homem lindo, divertido, inteligente e gostoso, ela, como seria natural para uma menina quase seis anos mais nova, descobriu nele a grande paixão platônica de sua vida, por mais errado que este sentimento fosse.

“Consigo o quê?”

Como poderia uma menina de 14 anos, por exemplo, por mais sucesso que fizesse na escola, não só entre os meninos de sua classe, pensar em ter algo com seu quase-primo de 20 anos, que estava na faculdade cercado por mulheres maduras e tão ou mais lindas que ela própria? Ainda mais se ele sempre a tratou como prima-irmã, claramente não vendo nela uma mulher.

“Você sempre acerta os momento... Tudo bem?”

Só que ela não sabia que, desde quando ela tinha seus doze ou treze anos e começou a desabrochar nela uma feminilidade lasciva, Caio se deliciava com sua beleza, adorando fazê-la rir de suas piadas. E ela nunca saberia, não fosse uma daqueles constantes viagens à chácara que seu padrinho tinha, que ficava há uma ou duas horas da capital, onde sempre faziam churrascos, onde passavam a tarde na piscina, onde os adultos bebiam até caírem no sono ao final do dia Ela nunca vai esquecer .

“Ah, Cassia, você esquece que você é minha? Eu não adivinho, eu sei quando você precisa de mim: o tempo todo.”

É, ele sabe.  Desde que aquele que deveria ter sido só mais um final de semana na chácara, que ficaria perdido na memória, misturado a tantos outros iguais. Mas naquele final de semana no meio de Julho, com o frio lhe abraçando por completo, sem piscina, sem tanto humor, quando tudo tinha que ser tedioso para uma jovem de dezoito anos, cheia de vida, vendo todos acabarem com garrafas e mais garrafas de vinho ao redor da fogueira, sem mais nada para fazer, ele fez tudo mudar, tudo ficar diferente, tudo ficar especial e mágico com um simples “vem aqui comigo” dito tão furtivamente no começo da noite, tirando ela do meio dos adultos sem que ninguém se importasse com isso, sem que ela esperasse por nada de diferente

 “Ah, seu ridículo! Não inverta as coisas, não. Você que não vive sem mim!”

O vento gelado na piscina escura, o frio que corta a pele, a fuga para atrás da casa de máquinas, o suave empurrão que colou as costas dela contra a parede, a respiração, olhos nos olhos, aqueles olhos hipnotizantes, aquela boca tão desejada e o beijo. Ah, o beijo. O mais gostoso e esperado beijo da vida de alguém. O beijo mais errado possível, o segredo mais bem guardado, o ato mais gostoso, a sensação que faz vibrar o corpo inteiro toda vez que é repetido. Tudo daquele dia e de todos os outros dias são tão inesquecíveis, que foi pensado e lembrado inclusive durante os dois casamentos.

Seu telefone tocou. Era ele. Sim, ela também o tem ele na palma das Mãos e ela sabe muito bem.

“Oi.”

Ele riu a risada mais gostosa do mundo, a risada pela qual ela se apaixonou ainda criança.

“Me conta como alguém viveria sem você?”, ele perguntou.

Ela riu.

“Ah, fácil. É só casar com minha melhor amiga.”

“Ah, é para pegar pesado?”

Ela ria, nervosa e relaxada ao mesmo tempo.

“Você não tem ideia do que foi ficar no altar vendo você casando com a Débora.”

“E você não tem ideia do que foi casar com outra mulher vendo você no altar. Você não devia ter aceitado ser a madrinha dela.”

“Sim, verdade, eu devia ter falado ‘amiga, desculpe, não posso ser a madrinha porque seu noivo é o grande amor da minha vida e eu sou o grande amor da vida dele’. Você tem razão”, ela disse cheia de ironia.

Ele riu:

“Foda.”

“É, foda.”

“Mas mais foda foi você me chamar para ser padrinho do seu filho.”

Ela gargalhou alto, já sem o mínimo sinal do estresse que a fez descer para fumar.

“Já que você não pôde ser o pai...”

Ele riu, novamente:

“Sua filha da puta!”


“Também te amo, Caio.”

“Porra, preciso te ver hoje.”

Ela sorriu tanto que ficou nítido em sua voz.

“Hoje é impossível. O Rodrigo vai me levar no cinema.”

“Vou te esperar na saído do seu trabalho. Depois você vai ver seu marido.”

“Tá bom. Eu saiu às dezessete e trinta”, disse submissa.

“Eu sei, boba. Vou chegar antes até. Dezessete e vinte estou na portaria. Estou levando as algemas. Até mais tarde. Beijão.”

Riram.

“Beijo”, ela se despediu.

O coração disparou como quando ela tinha 18 anos. Puta merda. Puta merda. Que delícia!

Ela acendeu outro cigarro.

Não é fácil se despistar de alguém, quando o alguém é a pessoa certa, a pessoa que te deixa entregue e confortável. O desejo é tão forte e é tão fácil falar sim, que precisa se esforçar para não ficar que nem brinquedo. E não há nada mais gostoso que se deixar ser um brinquedo na mão do tal alguém.
Voltou relaxada para sua mesa e foda-se se alguém tentar estressar ela.

___

O relógio marcava dezoito horas e treze minutos. Cassia marcou com seu marido de se encontrarem no cinema às dezenove horas, para comerem algo ante da sessão das 20h15. Por sorte, o cinema ficava a dez minutos de seu trabalho. Mas... Cadê o Caio?

Já fazia quarenta e cinco minutos que ele devia ter chegado. Já fazia quarenta e cinco minutos que ela esperava sentada em um banco, na calçada em frente à portaria do prédio em que trabalha. Suas tentativas de contato eram frustrantes. Era falta de sinal ou celular desligado? Ela precisava saber dele!

___

Caio realmente devia ter chegado. Às dezessete horas em ponto, ele desligou o computador. Em cinco minutos, ele estava de jaqueta e capacete, sentado sobre sua moto. Mas quando ele ligou o motor, Rodrigo, o marido da Cassia apareceu à sua frente. Um frio na barriga, a certeza que ele sabia de tudo. Moto desligada, capacete tirado.

“Caio”

“Rodrigo? Cara, tudo bem? O que você está fazendo aqui?”

“Não sei. Não sei. Você tem algum compromisso agora?”

“Tenho. Estou indo encontrar sua mulher para dar ao menos um beijo nela antes do cinema de vocês. Se der tempo, um motel rapidinho não está fora dos planos”, pensou Caio, que riu com seu pensamento.

“O que foi?”

“Não, nada. Desculpe. É que eu estou para comprar um tapete que a Anna tem me pedido há dias, enchido o meu saco, e eu sempre tenho uma desculpa. Eu prometi hoje para ela que compraria...”.

Toda boa mentira tem que ter uma verdade absoluta como base.

“... mas de verdade, um tapete não é prioridade se você, compadre, precisa de mim. O que foi?”

Caio estava tenso e preparado para se esquivar de um soco. Punhos fechado, músculos tensionados, mas disfarçava com um sorriso nos lábios.

“Ah, desculpe. Eu não sei. A Cassia... Tem alguns dias que ela está diferente. Alguns muitos dias. Eu não sei, mas como você é o mais próximo de irmão que ela tem, acho que, sei lá... Mas não precisa ser hoje. Podemos marcar? Amanhã ou depois de amanhã, você escolhe o dia.”

“Ei, calma, meu amigo. Calma. Não vamos ‘marcar’ porra nenhuma. O dia é hoje. O momento é agora. Vamos”, Caio desceu da moto. “Vamos tomar um cerveja ali na esquina para conversar.”

“Não quero te prejudicar com a Anna...”

“Relaxa. Ela vai entender. Vou até deixar o celular desligado para ela não perturbar.”

Entre cervejas, o Rodrigo desabafou uma suspeita de traição. Por isso até que ele a chamou para o cinema hoje, que saíram para jantar noite retrasada e tem procurado reconquistar a esposa. Depois de seis anos de casados, ela anda fria, ausente... Infeliz. A palavra certa era esta: infeliz. Fazia algumas semanas que não se tinha mais a risada gostosa dela, o lindo sorriso, nem ao menos o brilho incrível do olhar. Rodrigo começo ficou preocupado, mas ele percebeu alguns sinais que o deixou desconfiado, como o esmorecimento nítido no semblante dela o dia que ele foi busca-la no trabalho, com um presente e um convite para jantar.

Caio tratou de demonstrar o choque, real, sobre o assunto. Ele nunca imaginou que sua amada estivesse infeliz. Seria culpa dele? Seria por ele? Como iria resolver isso, caso fosse? Ele faria qualquer coisa pela felicidade dela, mas, como? Iriam os dois se separar? E os filhos? Ele não quer se separar do Pedro, seu filho de quatro anos e tem certeza que Anna não facilitaria sua vida. Mas é ainda pior. E os amigos? E seu pai? E os pais dela, como ficariam? Como ficaria a amizade dela com Anna? O Rodrigo, coitado, como iria enfrentar essa situação? Caralho, se fosse isso mesmo, a felicidade dela, e dele também, claro, só existiria com a destruição de muita coisa, de muita gente que não tem a menor culpa por eles terem deixado a situação evolui até onde está. Por que casaram com as pessoas erradas? Eram mesmo as pessoas erradas? Por que se permitiram ter filhos com estas pessoas? Por que não se assumiram desde o primeiro beijo? Por que ele foi tão imbecil em relação a isso a vida toda?

A cabeça de Caio girava enquanto ele tentava convencer o Rodrigo que a Cassia não faria isso. Não a Cassia que ele conhece desde que ela nasceu, não a Cassia que o faz suar as mãos tensas quando está ao seu lado, não a sua Cassia. Deveria ser o trabalho. Deveria ser algum outro problema. Ele iria conversar com ela.
___

Era dezoito horas e quatorze minutos quando  Caio se despediu do Rodrigo, após acertarem que o ideal seria que ele, Caio, começasse a dedicar mais tempo à Cassia, saindo com ela ao menos uma vez por semana, para tentar não só descobrir o que está errado, mas, principalmente, para ajudar a reanimá-la.

Caio ligou o celular. Três chamadas não atendidas. Duas de Cassia e uma de Anna. Telefonou imediatamente.

“Oi, meu amor, me desculpe. Me perdoe. Você não vai acreditar quem apareceu aqui e me chamou para uma conversar de quase uma hora e meia: seu marido.”

Ele nem pensou em ligar para sua esposa. Não era prioridade.

Caio, então contou para Cassia toda a conversa, detalhe por detalhe, antes de perguntar:

“Cá, nossa distância está lhe fazendo infeliz? É essa nossa situação que está lhe deixando assim?”

Cassia riu, nervosa.

“Infeliz?”

“É. O Rodrigo não teria como errar.”

Ela realmente andava desanimada, sem ânimo, estressada, mas não sabia por quê. A correria do dia a dia, trabalho, filho marido... Não tinha tempo para se preocupar com isso.

“Meu amor, tem tanta coisa na vida para me deixar assim. Não se preocupe. O importante é que agora vamos nos ver todas as semanas, certo?”

“Claro. Mas não é o bastante. Eu quero você feliz. É isso que importa, na verdade, você feliz.”

Ela sorriu.

“Meu amor, vendo você todas as semanas, estarei ótima!”

“Não. Sua felicidade não deve depender de um encontro semanal com ninguém.”

“Lindo, a bateria está acabando, mas você está errado. O que importa são nossos filhos, nossos cônjuges, as pessoas ao nosso redor. É o que importa e a gente vai ter que conviver com isso.”

“Não. Temos que encontrar algo melhor, alguma forma de...”

“Cá, meu amor, eu estou presa em um casamento horrível. Presa. E não pelo meu filho, não pelo seu afilhado. Estou presa pela relação que tenho com toda a família do Rodrigo, pelo o que eu represento para eles, para ele... Claro que meu filho também faz parte disto, mas filho não segura casamento. O resto todo à minha volta, não sei, mas talvez sim! Então, temos que aprender a conviver com isso, certo? Alô? Caio?”


Sem bateria no celular, sem o Caio naquela noite, tudo que restava a ela era seu marido e uma sessão infeliz de algum filme que ela não ligava qual, tudo que restava a ela era sua vida, real, pungente, vazia e infeliz.