sábado, dezembro 31
quinta-feira, dezembro 29
Sobre mulheres e cigarros
Gioavanna já era mulher na época em que eu era um garoto
babaca e besta. Loira tingida, mais baixa que a média, era minha grande
conquista – aos sábados, aparecia de repente em casa, de carro, para que
fossemos beber cerveja em um boteco qualquer – e, ao mesmo tempo em que, aos
dezessete, possuir uma mulher com vinte e dois me deixava com a sensação de ser
mais adulto e mais homem do que eu era de verdade, a beleza estonteante daquela
mulher me deixava inseguro e apreensivo como se eu fosse ainda mais juvenil do
que eu realmente era. Foi Giovanna quem me ensinou a apreciar o gosto de
nicotina em sua boca sempre ligeiramente adocicada e me ensinou todos os
caminhos para dar o máximo de prazer a uma mulher. Após alguns meses, fui
trocado por um fumante doze anos mais velho que eu, dono de uma bela motocicleta estilo chopper.
Esta mulher me marcou de um jeito que durante anos eu preferia
as fumantes, para apreciar a nicotina através das bocas das mulheres ou, hoje
eu sei, sentir novamente o gosto de Giovanna.
Muitos anos depois, conheci Bernadete. Linda,
loira de olhos verdes, era uma simples menina, nada inocente, porém, enquanto
eu já era um homem feito, embora ainda mais babaca e infantilmente besta. Eram doze anos de diferença. Eu continuava
sendo um não fumante amante do adocicado gosto de nicotina em bocas femininas e
Bernadete estava sempre com um cigarro aceso em mãos. Fumava e segurava o
cigarro de um jeito incrivelmente sexy. Era uma verdadeira Pin-Up, que me fazia
babar com incrível facilidade. Amei aquela menina como qualquer coroa em crise de
meia idade ama uma pós-adolescente e, definitivamente, viciei naquele sabor e
na fumaça, que frequentemente me envolvia.
Quando fui trocado por um cara da minha altura, da minha
idade e ruivo como eu, porém fumante, percebi que não tardaria para que eu
finalmente acendesse meu primeiro cigarro. E esse momento veio graças a Roberta,
uma prostituta aposentada, vingativa, que quase nunca me beijava – resquícios
da época de vida nada fácil que levara, onde adquiriu o hábito de não beijar
nunca –, impedindo assim que eu alimentasse o vicio que adquirira sobre o sabor
da nicotina. Tal abstinência somada a seus rompantes de fúria e estupidez, que me
deixavam extremamente tenso, colocaram o primeiro cigarro em minha mão, em
minha boca, e fez meu mundo mudar. Eu encontrei a paz, o paraíso, a divindade. Passei
a sentir em minha própria boca o adocicado gosto e não mais consegui sentir com
a mesma intensidade que antes o gosto da nicotina nas bocas que eu beijava rua
afora.
Talvez por isso, cheguei até Julieta, jovem e atlética, toda
dura e firme, ex-fumante e viciada em sexo, que tentava a todo custo me
convencer a não fumar, afinal todo ex-fumante é assim mesmo chato e, sendo
honesto, meu fôlego, um pouco por causa do cigarro e outro tanto pelo
sedentarismo, impedia que eu rendesse, sexualmente, claro, o tanto quanto ela
precisava para alimentar seu vício. Seu desespero chegou a um nível que ela
impôs uma espécie de greve de beijo caso eu chegasse perto dela logo após um
cigarro. E aqui cabe uma menção honrosa à boca de Julieta. A boca dela era
divina, fosse me beijando, fosse meu chupando, de um jeito que me dá saudades
sempre que penso nela.
Tathiane, a segunda loira tingida da minha vida – mas esta
porque que tinha a mesma idade que eu, e os cabelos brancos afetavam seu ego –,
já mulher robusta, completamente doida na cama, adepta do BDSM, e fumante, tem
na boca aquele gosto de nicotina no qual viciei. Sempre que saíamos para beber,
ela parava de falar no exato momento em que eu acendia um cigarro. Seus olhos
brilhavam e ela se excitava. Adorava me ver fumando. Dizia que fico
incrivelmente sexy.
Ela também adorava o gosto de nicotina na minha boca e gostava
que eu fizesse marcas de cigarro em suas costas quando me chupava.
Pauline, morena de olhos verdes, alta, com quadril largo,
cintura fina e os peitos mais lindos que eu já vi na vida, é uma perdição em
forma de mulher e, por algum motivo que nunca entendi qual, era completamente
louca por mim e até hoje me idolatra. Tingia o cabelo de loiro só para me
agradar. Costumava viajar quilômetros só para termos uma noite de sexo. Quando
me via, não conseguia parar de me beijar, tivesse eu fumado ou não. Nunca
fumou, mas me presenteava com maços de cigarros, Zippos e outros utensílios.
Uma loucura.
Meu grande problema é, e sempre foi, Ceci, minha grande
paixão platônica.
Conheci Ceci há quinze anos, em uma biblioteca, quando ambos
saímos para fumar um cigarro. Loira, claro, e inteligente de um jeito que faz
você se sentir um idiota, eu a poderia ouvir falando durante horas, mas ela
costuma beber tanto que apaga cedo. De vez em quando, ela me liga para irmos a
algum boteco beber, porque Ceci adora sentar comigo num boteco para dividirmos
algumas garrafas de cerveja. Seu problema é ser lésbica radical. Não é
preconceito, mas por causa de sua opção sexual, ela não me beijaria nem se eu
fosse o próprio cigarro, enquanto eu fico aqui doido de vontade e me sentindo
um babaca adolescente, mesmo com meus cabelos grisalhos.
Com licença, mas preciso de um cigarro.
quinta-feira, dezembro 8
O vazio e a saudade
Ontem sai do escritório sem destino, com a cabeça em você,
presença constante, que me tomou o raciocínio lógico, e dirigi sem saber
direito para onde eu seguia, até que passei em frente àquele bar, naquela
esquina onde bebemos cervejas juntas pela última vez. Foi a ultima vez que nos
vimos ou que nos falamos. Senti uma pontada diferente, uma saudade de algo que
nunca tive, e sem que eu percebesse, ou entendesse direito o porquê, meus olhos
queimaram e senti meu corpo todo arder neste inferno no qual você me colocou.
Estacionei o carro e fiquei ali, em silêncio, quieta, não sei por
quando tempo, não reparei, mesmo porque, por você, eu perdi completamente a noção
de tempo, de um modo geral. E, no silêncio, deixei o vazio me invadir, deixei a
dor maldita me dominar.
Sai do carro, enfim, e me sentei a uma mesinha do lado de fora do
bar, perto da mesa onde a gente se sentou daquela última vez. O bar estava
vazio, claro, afinal era segunda-feira, senão por um grupo com cinco amigos – homens
bebendo cerveja e fumando e rindo e falando palavrão. E eu ali, do lado, sozinha,
me sentindo uma extraterrestre.
Pedi um rabo de galo ao garçom, mas não bebi - você sabe que odeio rabo de galo. Fiquei apenas sentindo o
cheiro da sua boca até ter a perfeita noção de que seus lábios tocavam os meus,
naquele beijo enlouquecedor que só você deve saber dar e que eu só provei em
sonhos. Junto com o rabo de galo, o garçom me trouxe uma porção de torresmo,
com limão, do jeito que você sempre gostou de comer. Pedi também uma cerveja e
um maço de cigarros, exatamente como da última vez que estivemos ali. Pena que
dessa vez você não estava.
Aliás, como é isso de me menosprezar, ignorar que te amo, me jogar
de lado só porque eu me apaixonei por você? Como é ser o único ser humano que
não me deseja? Como é ser quem me faz sofrer as dores de todos os amputados? E
por que insiste em me ignorar, em não atender minhas ligações, não responder
meus e-mails desesperados clamando pelo direito de ouvir sua voz uma última
vez, de ver seus olhos novamente? Cadê a humanidade em você, para me tirar
desse fundo de poço em que você mesma me meteu?
Antes de terminar a cerveja, decidi sair do bar, dar uma volta, ou
qualquer coisa para tentar te esquecer. Rodei sem rumo e a necessidade de ver
alguém, ver pessoas, me estrangulava. Decidi ir ao Clube 6Sixxx6, o único lugar
aberto nas noites de segunda -feiras, e assim, claro, tive que passar na rua
das putas. Agora, me diga, por que eu tenho a sensação de que todas elas são
muito mais gostosas do que eu? É até difícil entender por que uma mulher
gostosa daquele jeito foi virar puta. Talvez por isso que às vezes sinto
vontade de passar uma noite na rua, só para ver como é.
Estava pensando nessas coisas quando uma japonesa, que me lembrou
você, mexeu comigo. Eu devia estar com uma cara péssima.
“Gata, não fica sozinha, não. Vamos sair”, ela disse algo assim. Era
linda.
Sem saber direito o porquê, parei o carro, voltei de ré e
perguntei o preço.
“Para você? Olha, você é tão linda e tão gostosa que te chuparia
de graça”, ela disse apoiando-se na porta do carro e deixando assim eu ver os
seios lindos e duros dela. Destravei a porta e ela entrou no carro. Fomos até
um hotel barato que tinha ali na rua mesmo. Faria bem para mim, sabe, sair com
outra mulher, estar com alguém, esquecer um pouco você.
Mas não esqueci.
Fiquei de olhos fechados enquanto ela me chupava. Olhos fechados e
pensando em você, imaginando que era sua boca em mim. Mas não gozei. Não
consegui. Faltava você. Falta você.
Saímos do hotel e a deixei na esquina onde a encontrei. Ela não
quis receber, disse que era puta de palavra, que tinha tido tesão em mim e por
isso o fez de graça. Agradeci e dei-lhe um longo beijo na boca de despedida. Só
no caminho de volta que percebi: nem perguntei seu nome.
Parei o carro em frente do meu prédio. Não entrei. Fiquei ali, sozinha,
ouvindo Garbage, tensa, sem conseguir sair do carro, sem conseguir ter sono e sem conseguir dormir. Somente quando o Sol nasceu, eu decidi sair de lá, entrar
em casa, tomar um banho, trocar de roupa e voltar para o trabalho.
Está difícil sem você. Insuportável, na verdade. Uma merda você
e esse maldito vazio que não me deixa mais viver. Uma merda.
quinta-feira, novembro 24
Enlouquecedor
Eu a conheci num sonho. Nesse sonho, ela surgiu do nada, ao
meu lado, com aqueles olhos lindos, aquela pele macia, aquela boca tentadora e
uma tatuagem linda e mágica que me deixava de pau duro. No sonho, abraçávamos e beijávamos um ao outro enquanto nadávamos num mar cuja água era sonora e nos encharcava
de música.
Todo dia de manhã, é seu beijo que me acorda. Aí eu ouço sua
voz sussurrando coisas doces e meigas ao meu ouvido. Então, sinto sua língua
invadir minha boca enquanto ela me afaga o cabelo com uma das mãos e, com a
outra, passeia pelo meu peito e desce minha barriga até descobrir o quanto ela
me excita. E ela tem as mãos mais suaves e firmes enquanto me masturba até eu
tremer de prazer. Depois ela me abraça e cuida de mim, e seu sorriso me acalma
e me relaxa.
Então eu entro no banho sozinho. Quando eu saio, ela já não
está mais.
Uma enfermeira entra no quarto sorrindo e falando meu nome,
simpática. Ela me dá um remédio, dizendo que é para o meu bem. Eu engulo o
remédio e vou para a sala ver televisão. A sala está cheia de gente. Sou
saudado por todos, que liberam uma poltrona que dizem ser reservada para mim. O
remédio me deixa meio sonolento e eu me deixo levar. Cochilo por vinte ou
trinta minutos. Quando acordo, descubro que, na verdade, ela nunca esteve aqui, nunca vem me visitar. No máximo fica ali do lado de fora, olhando de soslaio,
espiando pela janela, enquanto eu, aqui, no meio de tanta gente louca,
enlouqueço pensando nela. E é entre esses loucos, que fazem as vezes de meus
amigos, que me visto com a bombacha que eu sonhei ter ganho dela e seguro a
cuia vazia fingindo ter chimarrão para beber e para me esquentar.
Ela podia entrar, fingir que se importa, trazer um cobertor,
uma blusa, um pouco de erva mate e uma garrafa térmica cheia de água quente. Ou
um abraço. Qualquer coisa que me esquentasse. Mas, bah!, ela não vem. E eu sigo
aqui, jogado, sozinho, olhando fixamente para a porta, que nunca se abre. Sigo na
expectativa dela chegar, dela entrar; na esperança de sua visita. Mas ela nunca vem, e isso me enlouquece.
quarta-feira, novembro 23
Você é o favorito de alguém?
Uma pausa nos texto para um curta fenomenal (o vídeo tem o áudio todo em inglês e eu não vou colocar legenda por preguiça, portanto, clique caso seu entendimento na língua britânica seja bom).
(via: uma pessoa muito especial)
(via: uma pessoa muito especial)
terça-feira, novembro 22
Mendicância
Cerveja. Eu deveria, agora, estar tomando uma garrafa de cerveja. Gelada ou não, foda-se. Ou um destilado qualquer. Qualquer. É o
álcool que me importa. É meu remédio, eu sei. É ele quem me separa da mais
completa loucura, que me tira da realidade, porque, convenhamos, na realidade
ninguém consegue viver. Ou consegue? Sou só eu, então? Tudo bem, sou só eu
então. Foda-se. Que me julguem, que me excluam de suas vidas de merda, que se
fodam. Apenas não
me tirem o álcool. Não. Eu preciso dele. Preciso disso, tanto quanto esse povo
imbecil precisa do futebol, do carnaval ou da merda do samba.
É por isso que saí daí de onde você está, de onde você vive,
de onde você mora; porque não tem álcool, porque não tem vida, porque não tem
nada.
Ou então que me internem logo de uma vez em uma instituição qualquer para loucos e me dopem, me injetem algo nas veias que me retarde as ideias. Ou me amputem o cérebro, lobotomizem-me, façam algo que o valha, algo que preste, que sirva para algo. E me julguem, apontem o dedo, estou aqui para isso. Sou a escoria mesmo e sei que sou. E gosto de ser. E convivo bem sendo a escória. Sou seu mártir, seu exemplo negativo, sou tudo aquilo que você não pode ser e estou aqui para lhe lembrar o que você seria se você não se controlasse, se não tomasse seus remédios, se não fosse ao seu showzinho de MPB de merda. Estou aqui, sou o Cristo do novo milênio Sou sua salvação, torta, errada e prostituída. Sou todas as mazelas que você quiser que eu seja, desde que me sirvam mais uma dose, e aí estaremos bem.
Deixe-me que me embriague mais uma vez, outra vez e sem parar. Que meu fígado se apodreça e sangre-me todo por dentro. Foda-se.
Deixe-me que me embriague mais uma vez, outra vez e sem parar. Que meu fígado se apodreça e sangre-me todo por dentro. Foda-se.
Não precisa nem mesmo me dizer seu nome. Não o quero saber.
Não quero sua compaixão, sua dó, seu carinho. Engula sua necessidade de cuidar
dos outros, de cuidar de mim. Enfie seu altruísmo esfíncter adentro até que ele
saia em sua garganta. Vomite tudo. Vomite-me.
Eu te odeio, seu filho da puta. Eu te odeio.
sexta-feira, novembro 18
Imortal
Ele tinha apenas 17 anos quando se casou. Encontrara Rita, a
mulher de sua vida, que tinha dois anos a mais que o dobro de sua idade e era
completamente desprovida de beleza, de inteligência, de humor e de senso de ridículo.
Mas era rica. Milionária, até, era filha única de um magnata dono de duas
grandes empresas de importação e distribuição. Além do emprego garantido na
diretoria da empresa, o pacote pós-núpcias incluía uma cobertura em um bairro
nobre da cidade e um carro, qualquer um que ele escolhesse, até mesmo o qual
sempre sonhou em ter.
Insegura, ciumenta, possesiva, controladora e destemperada, Rita,
que explodia em gritaria a qualquer chateação por qual passasse, vigiava todos
os passos do infeliz, que nunca teve a menor chance de se divertir com amigos ou com
outra mulher. Para piorar, o passatempo preferido dela era humilhá-lo em
público, numa clara demonstração de que o tinha em mãos. Ele era seu
brinquedinho.
A verdade é que ele tinha asco dela, mas era consciente que qualquer esforço
valeria a pena para manter o nível de vida que conquistara e, por isso, ao
chegar em seu lar, todos os dias após o duro dia de trabalho, ele a amava louca
e doentiamente. E, assim, tiveram três filhos.
Os anos se passaram enquanto ela engordava a base de muito
pão, bolo, doces e chocolates. E conforme engordava, mais insegura, ciumenta,
possesiva, controladora e destemperada Rita ficava. E cada vez mais humilhava
seu marido, que paulatinamente ia se transformava em um poço de rancor, frustação
e ódio, prestes a explodir a qualquer momento.
No último dia do ano em que o caçula se formou em medicina
neurológica, o pai de Rita faleceu, deixando o controle total das empresas para
seu único e competente genro, afinal este fora o responsável por um crescimento
nunca antes imaginado. Ele passou então a trabalhar até mais tarde, um pouco
por ganância e dedicação, mas, principalmente, por que assim ganhava uma
desculpa válida para fugir daquele monstro com quem se casara e que algum imbecil, um
dia, chamou de mulher. Sem a presença do sogro, ganhava um pouco mais de
liberdade. Viagens, reuniões e uma série de eventos corporativos, todos
inventados.
Dinheiro, rancor, frustação ganhavam a companhia de muito
poder e um novo senso de liberdade. Ele descobriu a vida noturna, o uísque, a
cocaína e as putas.
Ah, as putas. Santas, todas. Mulheres maltratadas pela vida,
pela sociedade ou por clientes. Lindas, jovens e gostosas. Nunca fora tão bem
tratado por uma mulher.
Mas alguma coisa
começou a dar errado.
Ele não sabe precisar exatamente quando, como e nem com quem
tudo começou. Estava com uma puta qualquer, amarrada na cama, quando algo, não
sabe ao certo o que, o fez ver, no rosto da jovem e linda puta, Rita.
Completamente transtornado, tomado por um descontrole nunca antes
experimentado, sentou a mão na coitada, que mal reagiu. Quando ele finalmente
voltou a si, o pescoço dela estava marcado, os olhos arregalados e o coração
parado. Matara a puta. Um misto de susto, desespero e prazer tomara conta dele.
Excedia os limites do controle. O poder sobre a vida de uma pessoa. O poder.
Seu dinheiro e seus empregados trataram de arrumar tudo e qualquer vestígio fora
apagado.
Algumas semanas se passaram até que ele conseguisse sair com outra puta. Estava com medo. Mas, quando voltou a sair com uma, aconteceu novamente. Outra morte. Outra descarga de adrenalina. Outra vez, prazer e poder. E, dessa vez, sem medo, sem sustos. Gostou.
Ele, então, passou a percorrer o Estado e a matar uma puta
por semana, uma em cada cidade diferente. Encontrara a felicidade. Criara um
hobby.
Não odeia as mulheres. Muito menos as putas. Pelo contrário,
ama todas, incondicionalmente. Menos uma, Rita. Esta, ele odeia. Mortalmente.
É Rita quem ele vê no rosto de todas as putas que mata,
semana após semana. O problema é que ela continua viva.
quarta-feira, novembro 16
Em perfeição
Acordei com dificuldade para abrir os olhos, não pela luz, mas pelo peso que latejava e reverberava em minha cabeça. No corpo, aquela camiseta branca, com uma imagem abstrata, que vesti logo após meu último banho, três dias antes, e onde ainda repousa o perfume dela. Mais que seu perfume, é seu cheiro que me interrompe o pensar. Seu cheiro e seu gosto ocre adocicado do qual sou viciado. Respiro fundo e deixo ela me invadir.
Levanto. Sobre a mesa da sala, uma xícara, onde ainda há café, gelado. Foda-se. Mergulho duas aspirinas dentro e vou para a janela fumar. No prédio em frente, dois andares abaixo do meu, eu consigo vê-la saindo do banho, toalha enrolada no corpo e cabelo molhado. Deus, como ela é gostosa! Sinto meu fluxo sanguíneo se concentrar em seu maior objeto de adoração. Preciso tomar um banho, colocar uma roupa limpa, fazer a barba e ir vê-la. Ela deve ter chegado de viagem há pouco e não me avisou justamente por imaginar que eu estivesse dormindo. Ela some quarto adentro. Ela sempre some.
Quando volta, com o sutiã amarelo que lhe dei e um short preto colado ao corpo, ela para em frente ao grande espelho, onde só enxerga seus defeitos e sente todas as imperfeições do mundo lhe estapeando violentamente o corpo. Passa a mão por onde acha que sobra carne ou qualquer outra coisa inominável. Um pouco mais para baixo, também tem algo a mais, demais. De repente, ela olha para onde acha que falta o que ela mais queria ter e suspira por não poder transferir um pouco do que sobre aqui para onde falta ali.
E então ela acha que deveria ser mais alta, ou mais baixa, não lembro. Respira fundo. Está cansada. É solteira e tem convicção de que o motivo da solteirice é justamente aquilo que o espelho lhe grita. Esquece que eu seria seu capacho com um simples estalar dos dedos.
Ela gira sobre o calcanhar, vai até sua velha vitrola, coloca um vinil de alguma banda de rock dos anos setenta e se deixa cair ao sofá. Seu telefone toca. Sou eu.
- Chegou? Quando? Sei... Nada... Sim, vou! Só vou tomar um banho e comer algo... Claro! Você é linda.
Ligo o computador e coloco a Piaf para cantar.
No banheiro, ligo o chuveiro e, enquanto espero a água esquentar, faço a barba. Pelo espelho, vejo minhas olheiras, minhas rugas e meus cabelos brancos. Estou envelhecendo rápido, mas continuo bonito. Foda-se.
Meus olhos, os olhos dela. Ah, os olhos dela, que aproximam a humanidade inteira a Deus. E sua boca, que relaxa, acalma e me transporta a alguma dimensão onde somente lá eu consigo flutuar até ela me sussurrar qualquer coisa no ouvido, me amputando as pernas para eu não mais conseguir sair do seu lado. Aí ela me abraça, reconfortando-me, e pelo seu toque sou banhado por algum entorpecente alucinógeno no qual me afogo. Sem ar, sinto o sapatear dela sobre meus pulmões. Sapateia com um salto agulha.
Ela sequestrou meu coração e o enterrou atrás de uma árvore cheia de cupins, e segura meu cérebro com suas mãos pequeninas e delicadas. Sua boca então envolve meu pau por completo e eu volto à vida, revigorado.
Nada nesse mundo poderia ser mais sublime, lindo e delicioso que seu toque, seu olhar, sua presença, seu estar ou seu ser.
Ela é um sonho, mas é real. Ela me esgota. Ela me preenche.
Dentro de poucos minutos, eu a possuirei como nunca possuí outra coisa. Mas ela não é minha. Nunca será.
Levanto. Sobre a mesa da sala, uma xícara, onde ainda há café, gelado. Foda-se. Mergulho duas aspirinas dentro e vou para a janela fumar. No prédio em frente, dois andares abaixo do meu, eu consigo vê-la saindo do banho, toalha enrolada no corpo e cabelo molhado. Deus, como ela é gostosa! Sinto meu fluxo sanguíneo se concentrar em seu maior objeto de adoração. Preciso tomar um banho, colocar uma roupa limpa, fazer a barba e ir vê-la. Ela deve ter chegado de viagem há pouco e não me avisou justamente por imaginar que eu estivesse dormindo. Ela some quarto adentro. Ela sempre some.
Quando volta, com o sutiã amarelo que lhe dei e um short preto colado ao corpo, ela para em frente ao grande espelho, onde só enxerga seus defeitos e sente todas as imperfeições do mundo lhe estapeando violentamente o corpo. Passa a mão por onde acha que sobra carne ou qualquer outra coisa inominável. Um pouco mais para baixo, também tem algo a mais, demais. De repente, ela olha para onde acha que falta o que ela mais queria ter e suspira por não poder transferir um pouco do que sobre aqui para onde falta ali.
E então ela acha que deveria ser mais alta, ou mais baixa, não lembro. Respira fundo. Está cansada. É solteira e tem convicção de que o motivo da solteirice é justamente aquilo que o espelho lhe grita. Esquece que eu seria seu capacho com um simples estalar dos dedos.
Ela gira sobre o calcanhar, vai até sua velha vitrola, coloca um vinil de alguma banda de rock dos anos setenta e se deixa cair ao sofá. Seu telefone toca. Sou eu.
- Chegou? Quando? Sei... Nada... Sim, vou! Só vou tomar um banho e comer algo... Claro! Você é linda.
Ligo o computador e coloco a Piaf para cantar.
No banheiro, ligo o chuveiro e, enquanto espero a água esquentar, faço a barba. Pelo espelho, vejo minhas olheiras, minhas rugas e meus cabelos brancos. Estou envelhecendo rápido, mas continuo bonito. Foda-se.
Meus olhos, os olhos dela. Ah, os olhos dela, que aproximam a humanidade inteira a Deus. E sua boca, que relaxa, acalma e me transporta a alguma dimensão onde somente lá eu consigo flutuar até ela me sussurrar qualquer coisa no ouvido, me amputando as pernas para eu não mais conseguir sair do seu lado. Aí ela me abraça, reconfortando-me, e pelo seu toque sou banhado por algum entorpecente alucinógeno no qual me afogo. Sem ar, sinto o sapatear dela sobre meus pulmões. Sapateia com um salto agulha.
Ela sequestrou meu coração e o enterrou atrás de uma árvore cheia de cupins, e segura meu cérebro com suas mãos pequeninas e delicadas. Sua boca então envolve meu pau por completo e eu volto à vida, revigorado.
Nada nesse mundo poderia ser mais sublime, lindo e delicioso que seu toque, seu olhar, sua presença, seu estar ou seu ser.
Ela é um sonho, mas é real. Ela me esgota. Ela me preenche.
Dentro de poucos minutos, eu a possuirei como nunca possuí outra coisa. Mas ela não é minha. Nunca será.
sexta-feira, novembro 11
Ela
Uma homenagem a várias amigas minhas.
Ela
Um grito agudo e estridente a acordou. Assustada, mal abriu
os olhos e já estava de pé, num pulo, sem pensar, e foi correndo ao quarto da
filha - coisas que só uma mãe entende. Sua pequena dormia tranquilamente. Ah,
ótimo, que alívio, está tudo bem. Mas, quem gritou? Sua filha sonhara? Ela
própria sonhara?
Voltou para o quarto, onde seu marido dormia, tranquilo, seu
sono pesado. Olhou para o relógio, que mal passara da primeira hora do dia. Incrível
como seu marido nunca acordava, por nada, para nada. Nem quando a sua filha era
ainda um bebê e dormia na cama com eles, o infeliz não acordava. Sempre foi
assim. Sempre era ela quem tinha que acordar de madrugada para preparar
mamadeira, para trocar fralda ou para socorrer a filha qualquer que fosse o
problema. Sempre ela que preparava jantar, almoço e lavava a louça. Fazia tudo.
Só ela. Sempre. Ele nunca fazia nada. Nunca ajudava em nada. Inútil! Por que
ela ainda estava casada com ele? Nem ela sabia ao certo.
Perdeu sono.
Decidiu ir para a sala, fumar um cigarro e tentar relaxar -
fumar faz bem. No corredor, escuro, chutou um brinquedo e fez um barulho tão
alto que o vizinho de baixo poderia ter acordado, mas, por sorte, a filha
puxara ao pai e também não acordava fácil. Fechou os olhos, de raiva. Respirou
fundo. Realmente, precisa de um cigarro. Pegou o maço e foi para o lado da
janela, onde se debruçou. Adorava fumar ali, vendo a noite daquela rua agitada
onde morava. Adorava morar ali, perto de tantos bares legais. Talvez por isso
ainda estivesse casada, para não ter que mudar dali. Acendeu o cigarro. Era o
último do maço, merda. Ía ter que descer para comprar mais pois, numa hora
dessas, vai que um cigarro seja pouco? Terminou de fumar vendo os carros
passarem, as pessoas que entravam e saiam dos barres, riam, conversavam, fumavam,
bebiam e se divertiam. Ah, como é bom ser jovem, solteiro e sem preocupação.
Apagou o cigarro e voltou para o quarto. Colocou um short
jeans qualquer, um chinelo de dedo e, por cima da regata branca que usava, uma camiseta,
também branca, com gola em “V”, do Velvet Underground. Passou no banheiro,
arrumou o cabelo de qualquer jeito, preso mesmo, mais fácil, passou lápis, batom
e perfume porque, né?, vai descer na rua que está agitada, cheia de gente
bonita, jovem, arrumada e ela não podia fazer feio.
Chegando lá embaixo, o porteiro dormia sentado, debruçado
sobre a mesa, como sempre. Só ela, naquele prédio, não tinha o sono pesado?
Passou pela porta do prédio. O bar onde costumava comprar seus cigarros, um bar
velho, simples, para quem gosta de cerveja e não da badalação, era vizinho do
prédio, à direita e fechava tarde. Por isso, rumou à esquerda. Seria bom
passear um pouco.
Passou por três quarteirões e, no caminho, por duas vezes,
alguém mexeu com ela. Dois homens, cada um e um bar diferente. Bonitos, até.
Quer dizer, ah, não podia exigir muito. E mexeram! Não estava tão mal, afinal.
Nem tão velha. Mas ela os ignorou. Era casada e nunca fora dessas mulheres que
traem. Ao final do terceiro quarteirão, atravessou a rua e voltou pela calçada
oposta. Só queria ver um pouco do movimento. Nada demais.
Entrou no velho bar vizinho ao prédio, pediu um cigarro e
uma latinha de cerveja, e se sentou ao balcão. Logo no primeiro gole, tão bom,
tão gelado, tão reconfortante, ela sentiu-se arrepiar. Sorriu. Percebeu que
precisava de um cigarro.
Saiu à rua com a lata de cerveja na mão. Acendeu um cigarro
e decidiu dar mais uma volta.
No final do quarteirão ficava o bar onde o primeiro dos
fulanos tinha mexido com ela. De relance, parecera bonito. Não custava nada
passar em frente ao bar mais uma vez, para vê-lo melhor. Sim, ele ainda estava
lá, sentado, dentro do bar com alguns amigos. Seus olhares se cruzaram. Ela
ficou vermelha, olhou de lado e resolveu voltar para casa. Quase em frente ao
prédio sentiu alguém a segurar pela cintura.
“Não precisa fugir. Não mordo. Não sempre.”
Surpresa, ela sorriu.
“Como você se chama?”, ele perguntou.
Ela se virou para ele e devolveu a pergunta.
“Qual é o seu nome?”
“Carlos.”
“Carlos, se você não morde,
o que você quer exatamente?”
Ela foi enfática e direta, o que o desconcertou.
“Olha, eu sou casada, tenho uma filha de quatro anos, moro
aqui do lado, e da janela do meu quarto, onde meu marido está dormindo, dá para
esse bar. Não sou dessas. Não traio meu marido. Nunca traí, nunca trairei”,
disse um pouco alterada.
“Você é linda.”
“Não. Eu estava dormindo até quinze minutos atrás. Estou
toda amassada.”
Ele a puxou pela cintura e colou o corpo dela no dele. Ela
tomou um susto, mas antes que ela falasse alguma coisa, ele a beijou.
“Você é louco? Tá pensando o quê? Eu sou casada.”
Ele a beijou de novo. Dessa vez ela se desvencilhou dele.
“Não. Para. Sério. Olha, eu moro ali”, apontou a janela de
sua sala. “Assim não. Não posso. Meu marido pode acordar e aparecer ali e me
ver...”
Ele a beijou mais uma vez. Dessa vez, deu-se por vencida.
Mesmo porque, além do beijo de Carlos ser delicioso, o inútil do seu marido não
acordaria nem se duas pessoas estivessem transando na mesma cama que ele.
“Carlos, espera. Aqui, não. Alguém pode ver.”
“Vamos para o bar.”
“Eu moro aqui. Todo mundo me conhece, conhece meu marido.
Não.”
“Então... Onde?”
“Carlos, você é um homem destemido?”
“Você não faz idéia.”
“Então vem comigo.”
Ela o pegou pela mão e o puxou. Pararam em frente ao prédio.
A adrenalina a lavou. Tentou enxergar o porteiro através do vidro, mas a
película escura deixava muito
escuro dentro do prédio.
“Espere aqui um pouco.”
Com cuidado, abriu a porta de vidro. Um ronco reverberou
pelo saguão: o porteiro ainda dormia. Com um gesto, chamou Carlos para entrar.
“Silêncio, agora.”
Com todo cuidado necessário, delicadamente, chegaram até o
elevador. Carlos não estava entendendo direito o que acontecia, mas entrou no
jogo.
“Onde a gente está indo?”
Ela sorriu.
“Calma. Você vai gostar, tenho certeza.”
Chegaram ao andar dela. A luz do corredor se acendeu
enquanto a porta do elevador se fechava atrás deles. Ela deu um rápido beijo
nos lábios dele, tirou a chave do bolso e encaixou na porta.
“Com todo cuidado agora, ok?”
Ele assentiu em silêncio.
Ela entrou em casa seguida por Carlos. Calmamente, fechou a
porta. Carlos estava parado, um pouco assustado, conforme seus olhos
demonstravam. Ela o levou até a cozinha e encostou a porta que a separa da
sala. Sentia o coração na boca. O medo deixa tudo mais gostoso.
“Eu moro aqui. Meu marido tem o sono pesado, não acorda
nunca, para nada.”
Ele sorriu e a agarrou.
“Agora sou toda sua. Você tem camisinha?”
Sorriram.
terça-feira, novembro 8
Namorados
Ela saiu do bar, que já estava quase vazio, e se sentou no
meio fio da calçada em frente, quase na esquina. A essa hora da madrugada, foda-se que estava de saia. O estômago não estava legal. Precisava de um ar.
Precisava fumar. Jogou o cabelo para o lado com um movimento de cabeça e tirou
o maço do bolso. O primeiro trago foi com os olhos fechados. Ioga para quê? Sentiu alguém se aproximar. Ela não precisava olhar para saber quem era.
“Posso sentar do seu lado?”
Pedro trazia dois copos. Ela não respondeu.
“Você esqueceu seu mojito”, disse ao se sentar.
Ana agradeceu com um sorriso e encostou a cabeça no ombro de
seu melhor amigo.
Pedro e Ana se conheciam há cinco anos e, desde o começo da
amizade, era nítido que Pedro se apaixonara por ela. Não o disfarçava. Nem
tentava. Estava sempre por perto, sempre à mão. Ele se fazia de motorista, de terapeuta, de confidente, pagava algumas contas de bares, emprestava dinheiro que nunca cobrava e dava presentinhos sem data específica. Mas não,
não rolava. Era feio, desajeitado, baixo, magrelo, tímido, inseguro e omisso. Tanto
que, em cinco anos, nunca tomara atitude alguma, nunca tentara nada. Ela achava
isso triste, verdade, mas aproveitava, afinal seu ego adorava a situação.
A sorte dele, porém, poderia ter mudado naquela noite. Ana
estava vulnerável e carente. Tinha duas semanas que terminara o terceiro namoro
do ano. E era março ainda. Por isso, naquela noite, no bar, decidiu se embebedar,
afogar o mundo em seis copos de mojito. E a partir daí, começou a acreditar que
podia ser o Pedro. Tinha que ser ele.
“Estou passando meio
mal. Acho que bebi demais.”
“Quer uma água? Uma Coca-Cola?”
“Não, eu preciso ir embora. Mas ‘tô bêbada. Você me leva?”, perguntou
tendo a certeza que Pedro não a decepcionaria.
“Claro, Ana. Mas, como a gente faz? Eu estou de carro, você
está de carro.”
A falta de malícia e a burrice dele a irritavam de vez em
quando. Mas tudo bem. Sem problema. Ela aguenta isso. Ela consegue conviver com
isso. Oras, viveu já cinco anos com ele como amigo, não?
“Ah, eu deixo meu carro aqui. Amanhã eu pego.”
“Mas vai largar na rua?”
“Está num estacionamento. Não tem problema.”
“Bom, se você ‘tá falando...”
Levantaram, Ana com a ajuda dele, pagaram a conta e rumaram
para a casa dela.
“Pronto, está entregue”, disse, acordando Ana. O Sol já
nascia.
“Nossa, já?”
“Você dormiu.”
“É.”
Ficaram em silêncio. Ele esperava o tchau definitivo, talvez não soubesse o que falar. Ela
alguma fala, alguma ação, qualquer coisa que não vinha, que não veio. Deus!,
será que ele não percebe que hoje não, que hoje é para ele subir?
“Bom, então, obrigada. Vou tentar preparar um chá para mim,
para ver se melhoro. Ai, será que consigo subir as escadas?”, disse rindo de si
mesma. Atuava. Não que não estivesse bêbada. Estava, mas nem tanto.
“Se você quiser... Não me entenda mal, mas se você quiser eu
te ajudo.”
“Ai, Pedro, eu te amo. Você ajuda mesmo?”
“Claro”.
Subiram os três andares do pequeno prédio. Ana se apoiava
nele.
Entraram no apartamento, ela correu para o banheiro enquanto
ele colocava a água para ferver. Ana precisava fazer xixi, precisava colocar
algo mais confortável.
“O chá está pronto, Ana!”, gritou ele.
Ela surge de dentro do quarto vestindo apenas uma grande e
larga camiseta cinza. Retocara o batom. A luz do Sol, que nascia, entrava e a
iluminava de forma diferente. Estava verdadeiramente linda. Ela sabia. Pedro,
apesar de olhar descrente do que via, apenas serviu duas xícaras de chá.
Sentaram-se ao sofá, um do lado do outro. Ela encostou a
cabeça no ombro dele mais uma vez e jogou um das pernas sobre as pernas dele.
Pedro a abraçou pelo ombro.
Só pode ser ele. Tem que ser ele. Não importa que ele seja
feio, não importa que não haja paixão. Ele a ama e ela o domina, isso basta.
Enquanto tentava se convencer, adormeceu.
Acordou deitada na cama. Coberta. Ainda vestida. Ainda de calcinha. E sozinha no apartamento.
domingo, novembro 6
Por pouco
A padaria ficava há algumas quadras de sua casa. Era uma
caminhada que ele adorava fazer, principalmente aos finais de semana, pela
manhã. As ruas do bairro, arborizadas, tinham vida, paixão, e era bucólica, ao
mesmo tempo.
Como de costume, naquela sábado, acordou cedo – ou mal
dormira – e passou quase uma hora conversando não só com o porteiro do prédio,
mas com todos os vizinhos que passassem por ali. Já na rua, cumprimentava a
todos, sorrindo, e conversou amigavelmente com os funcionários da padaria, onde
tomou seu café preto com um pão na chapa bem torrado e comprou um maço de
cigarros.
No caminho de volta, sentou no banco da praça que fica atrás
do prédio em que mora há tantos anos que não lembra mais. Ficou ali o resto da
manhã, olhando as crianças brincarem, correrem e pularem. Ser criança, com o
brilho único no olhar e sorriso no corpo inteiro, é a liberdade de ser como e
quando quiser, sem saber que lhe julgam e não ter saudades.
Ele se mudara para aquele bairro, para aquele prédio, aos
trinta e quatro anos de idade, logo que se separou de Vânia. Fazia, então,
quarenta e sete anos que morava ali, que morava sozinho, que vivia sozinho. Não
fora solitário, porém. Primeiro eram seus três filhos que vinham um final de
semana sim, outro não. E tinham os feriados, as férias, as visitas de amigos e
amigas, as putas que ele sempre chamava e os casos que teve com as esposas de
maridos burros e cegos. Depois vieram os netos. Eram sete. Estes vinham sempre,
todos os finais de semana, quando não um, outro. De um modo geral, a vida
sempre foi agitada. De dia, pelo menos. À noite, cabeça no travesseiro, o vazio
da cama berrava estridente, cuspia em sua cara e pisava em seu peito. Às vezes,
mãos pesadas e traiçoeiras, invisíveis, lhe apertavam forte o pescoço, lhe sufocavam.
Mas ele sobrevivia.
Depois que se separou de Vânia, mulher que o manipulou por
nove anos, de quem foi vitima de sequestros e abusos emocionais, perdeu a
capacidade de amar apaixonadamente. Talvez nem tanto fosse a solidão noturna
que lhe queimava, mas a falta de viver aquele fervor, aquela ânsia. Por isso sentia
o coração ofegante, quase morto, por tanto tempo, o que lhe matou a criança que
tinha dentro de si.
Assim, adquiriu o hábito e, todo final de semana, parava
naquela praça. Era querido pelos pais e pelas mães. Era o avô de todas as
crianças. Dentro de sua limitação física – desde que quebrou o fêmur, num
acidente de moto, nunca mais foi o mesmo – provocava e brincava com as
crianças. Vez ou outra, um pai ou uma mãe, ou uma babá, sentava-se ao seu lado
e ficavam conversando sobre amenidades, fumando ou apenas lendo os jornais e
comentando suas notícias.
Naquele sábado, o Sol ardido, mais uma vez não viu as horas
passarem. Foi uma manhã boa, animada, como costumavam ser sempre os seus dias. Mas
chegava a hora do almoço. Pais precisavam preparar o almoço e crianças
precisavam almoçar. A praça esvaziava e, com ela, seu coração. E quanto mais
vazio ficava, mais difícil era respirar. Luana, morena ancuda, olhos verdes,
peituda e mãe de três, perguntou se queria que o acompanhasse até em casa. Um
doce de mulher. Não, estava tudo bem. Sorriram. Despediram-se. Ele ficou ali, sentado,
olhando o doce rebolar de Luana até ela desaparecer de vista. Deteve mais
alguns minutos, enquanto fumava mais um
cigarro. Procurava forças.
Quando se levantou, sentiu uma leve tontura seguida de um
agudo, surdo e intenso fisgar no peito. Caiu.
Ao retomar a consciência e abrir os olhos, a vista doeu,
ardeu. Tudo claro, claro demais: teto branco demais e iluminado demais.
“Pai?”
Seu caçula lhe chamava.
Tivera um ataque cardíaco. Sorte que, no exato momento da
queda, algum vizinho chegava na praça, caminhava em direção dele, para lhe
cumprimentar.
Ficara três semanas desacordado. Todos, filhos, netos,
sobrinhos, primos e vizinhos, aflitos e desesperados de preocupação. Mas agora,
tudo bem. Ele acordou.
Um médico entrou e explicou os pormenores. Sobrevivera, foi
por pouco, mas não foi dessa vez que morreu.
Uma lágrima se soltou de seus olhos. Ele respirou fundo.
Resignou-se.
sábado, novembro 5
Final de semana
Ainda estava escuro naquele sábado quando ele finalmente chegou ao
calçadão. Olhava para o mar pela primeira vez depois de mais de vinte anos. Nem
o bom comportamento o salvou. Lembrou-se dos filhos, com quem costumava ir à
praia todo final de semana, mas cuja vida o destinou tomou, há dez anos. O
coração estava paralisado. O ar, rarefeito.
Tirou os sapatos e os colocou, cuidadosamente, junto a uma árvore.
Dobrou a calça jeans, velha, até os joelhos. Tirou a camisa para melhor sentir
o vento, ainda não aquecido pelo Sol, envolver seu peito. Com muita ansiedade e
medo, vagarosamente, deixou os dedos de um dos pés tocarem a areia fria. Um
raio percorreu sua espinha. Plantou o pé. Um orgasmo lhe atingiu. Trouxe o
outro pé para junto desse. Fechou os olhos. Era só sentimento.
Ficou ali, parado, por quase trinta minutos. Só sentindo. Era
mais de vinte anos, afinal.
Quando abriu os olhos, o céu já começava a clarear. Olhou em
volta. Algumas pessoas passavam pelo calçadão, daqui para ali, de lá para cá.
Na areia, mesmo, ninguém ainda. Foi andando em direção ao mar.
Quando sentiu a areia molhada, deteve-se. Olhou para o pé,
que afundava um pouco. Sorriu. Olhou de novo para o mar. Dentro de seu peito,
todos os cavalos do mundo corriam freneticamente.
Um final de onda chegou para lhe saudar, beijando
delicadamente seus pés. Gelado.
Em um rompante inesperado, correu para a água. Deu um
mergulho que lavava anos e anos de dor. Emergiu com a água na altura da
cintura. Mergulhou de novo. Brincava, como uma criança. Gargalhava.
O Sol, então, resolveu aparecer. Ele deixou o corpo afundar
até ficar com água na altura do pescoço. Boiava. Ah, boiava. Que sensação. Livre.
Leve. Como não lembrava ser possível ser. Sentiu uma lágrima quente lhe
escorrer o rosto.
Quase uma hora depois, saiu da água. Andava pela areia
arrastando o pé, brincando, deixando rastros. Sentou-se na areia e ficou
assistindo o cenário, as pessoas, tudo. Respirou fundo e jogou o corpo para
trás, deitando. Cruzou as mãos atrás da cabeça e olhou o céu.
De repente, sem perceber, sem sentir, finalmente, adormeceu.
sexta-feira, novembro 4
Mais uma Sexta-Feira
O relógio bate vinte horas e ela ainda está no escritório. Sozinha.
Afundada no trabalho, relatórios para examinar e prazos para cumprir, não viu
as horas passarem. É sexta-feira e todos saíram mais cedo nessa noite, menos
ela. Todo mundo tinham alguma coisa pra fazer. Menos ela. Respira fundo. É hora
de ir embora.
Sem arrumar nada da papelada sobre sua mesa, fecha o
escritório e liga o alarme. No carro, coloca um CD dos Ramones e sai dirigindo
pela cidade chuvosa, sem rumo e sem direção, até parar em um supermercado
qualquer, onde compra seis garrafinhas de alguma Ice, sem prestar atenção na
marca.
De volta ao carro, a chuva aperta. Sem sair do
estacionamento, acende um cigarro e abre uma das garrafinhas. Não abre os vidros
para não molhar o carro; para não se molhar. As cinzas vão caindo sobre sua
minissaia preta, ou no banco com alguns buracos feitos por uma ou outra brasa
de cigarro, ou no chão do carro. Espera terminar a garrafa para ligar o carro e
voltar à rua. Durante o caminho fuma um cigarro atrás do outro enquanto bebe
sua Ice. Não para de dirigir. Ela gosta. Relaxa.
A noite cai e o trânsito começa a ficar mais e mais intenso
quando ela abre a última garrafinha da bebida, que já está sem gelo. A falta de
companhia começa a latejar. Pensa em ligar para os amigos e amigas a procura de
alguém que ela pudesse ligar para lhe fazer alguma companhia, mas lhe falta
coragem.
Para o carro em frente a um boteco qualquer, sujo e escuro. Escroto.
Dentro, só tem bêbados velhos. Ela fecha os olhos e respira fundo. Procura coragem
que as seis garrafas de bebida ainda não lhe deram. Ajeita a maquiagem, tira o
sutiã e abre os dois primeiros botões da camisa branca. Abaixa a cabeça e reza.
Fica parada por quase vinte minutos. Liga o carro e dá a volta no quarteirão. A
chuva aperta. Está frio lá fora, e ela sabe. Estaciona o carro na rua de trás
do bar. Do espelho retrovisor, retira o mini terço e o aperta contra a mão. Reza
mais uma vez. Devolve o terço ao retrovisor e solta um grito libertador. Desce
do carro e sai correndo, deixando a chuva lhe lavar. A camiseta ganha certa
transparência. Ela sente muito frio.
Entra no bar. O cabelo pinga. Todos param de conversar e
olham para ela. Ela travessa o bar enquanto é devorada pelos olhos de todos os bêbados
dali. Pede uma dose de pinga e espera. Não tardará e algum velho imundo, fedido
e porco chegará até ela falando uma gracinha qualquer e ela o levará para o banheiro
nojento.
Alguma coisa tem que dar certo para ela.
terça-feira, novembro 1
Rotina
Ela acorda cinco minutos antes de abrir os olhos, procurando algum motivo para não ficar na cama o resto da manhã. Respira fundo quando só descobre obrigações de uma vida adulta fracassada. E tem contas a pagar.
Levanta da cama. Calmamente dá uma volta na cama, gira pelo quarto. O despertar vem devagar. Vai a até a janela, mas não abre as cortinas – ainda está escuro lá fora de qualquer jeito.
No banheiro, sente o chão gelado com a sola dos pés e volta atrás de seu chinelo. Liga o chuveiro e espera a água esquentar um pouco antes de entrar box adentro. Em trinta minutos, o vapor se solidifica nas paredes e embaça o espelho. Ela desliga o chuveiro e se enxuga, delicadamente.
De volta ao quarto, sentada sobre a cama, passa cuidadosamente os devidos cremes por todo seu corpo. Perfuma-se. Lingeries confortáveis e viva a humanidade que não lhe dá a devida atenção, que não lhe quer comer!
Não tem tempo ou ânimo para o café da manhã que tomaria nem se morasse em um hotel três estrelas. Dois biscoitos água e sal e uma maçã lhe forram o estômago. Levando a mochila com o velho notebook e sua bolsa, desce até o carro.
As ruas ainda estão acordando. Ela nem lembra de ligar o rádio; segue em silêncio.
Em vinte e alguns minutos, já com todas as ruas despertas, ela chega ao escritório. Na subida até a sala, serve-se de um grande copo com café. Vai direto para a cobertura do prédio fumar seu primeiro cigarro do dia. Ainda não tem ninguém ali.
Quando senta em sua mesa, abre o computador, procura por e-mails. Hoje é sexta-feira e ela procura alguma coisa que lhe tire da dura rotina do abandono e da solidão que lhe aplaca em quase todos os finais de semana. Sozinha não sai, não consegue. Escolhe três ou quatro programas culturais pinçados de um dos jornais e envia e-mail para seus contatos convidando a todos. Alguém tem que ceder: ou aceita a sua sugestão ou a convida para o tal do outro programa que todos sempre tem para fazer.
Perto da hora do almoço, toda sua lista de contatos respondeu seu e-mail. Ninguém vai, é o que dizem. Em nada. E vão fazer o quê? Cadê o convite que lhe tire de casa?
Não vem. Não tem. Não existe.
Hoje é sexta-feira e ela vai passar o final de semana inteiro sozinha.
Hoje é sexta-feira. Mas, Deus!, bem que podia ser segunda.
Levanta da cama. Calmamente dá uma volta na cama, gira pelo quarto. O despertar vem devagar. Vai a até a janela, mas não abre as cortinas – ainda está escuro lá fora de qualquer jeito.
No banheiro, sente o chão gelado com a sola dos pés e volta atrás de seu chinelo. Liga o chuveiro e espera a água esquentar um pouco antes de entrar box adentro. Em trinta minutos, o vapor se solidifica nas paredes e embaça o espelho. Ela desliga o chuveiro e se enxuga, delicadamente.
De volta ao quarto, sentada sobre a cama, passa cuidadosamente os devidos cremes por todo seu corpo. Perfuma-se. Lingeries confortáveis e viva a humanidade que não lhe dá a devida atenção, que não lhe quer comer!
Não tem tempo ou ânimo para o café da manhã que tomaria nem se morasse em um hotel três estrelas. Dois biscoitos água e sal e uma maçã lhe forram o estômago. Levando a mochila com o velho notebook e sua bolsa, desce até o carro.
As ruas ainda estão acordando. Ela nem lembra de ligar o rádio; segue em silêncio.
Em vinte e alguns minutos, já com todas as ruas despertas, ela chega ao escritório. Na subida até a sala, serve-se de um grande copo com café. Vai direto para a cobertura do prédio fumar seu primeiro cigarro do dia. Ainda não tem ninguém ali.
Quando senta em sua mesa, abre o computador, procura por e-mails. Hoje é sexta-feira e ela procura alguma coisa que lhe tire da dura rotina do abandono e da solidão que lhe aplaca em quase todos os finais de semana. Sozinha não sai, não consegue. Escolhe três ou quatro programas culturais pinçados de um dos jornais e envia e-mail para seus contatos convidando a todos. Alguém tem que ceder: ou aceita a sua sugestão ou a convida para o tal do outro programa que todos sempre tem para fazer.
Perto da hora do almoço, toda sua lista de contatos respondeu seu e-mail. Ninguém vai, é o que dizem. Em nada. E vão fazer o quê? Cadê o convite que lhe tire de casa?
Não vem. Não tem. Não existe.
Hoje é sexta-feira e ela vai passar o final de semana inteiro sozinha.
Hoje é sexta-feira. Mas, Deus!, bem que podia ser segunda.
(Sem título)
Mil e mais mil. Milhares de vozes gritando freneticamente. Não param. Não cansam. Uma sinfonia difusa, estridente e sufocante. Agonia em forma de sons. É a loucura que lhe estende os braços e esfrega todas as infinitas mãos por todo seu corpo, que lhe rouba a razão, que lhe capa a alma. Não, nem mais o álcool lhe ameniza. Nada amortece. Não existe anestésico.
Exausto, sai às ruas. Procura algo, mas não sabe o que. A chuva não lava a alma. E agora? Para onde ir? Qual o caminho? Existe alguma direção? Está na rua de casa. Está perdido. Quer voltar, não sabe para onde, não sabe para quando.
Como se faz para surtar de vez? Calariam as vozes?
Alguém sabe as respostas, ele não sabe quem.
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