sábado, junho 8

Amor, II

Julia tinha onze anos quando, em seu primeiro dia de aula na nova escola, conheceu Mário, da mesma idade que ela. Tímida e retraída, tudo que queria era não ser notada, para que ninguém reparasse nas manchas roxas que seu pai espalhava pelo seu corpo todo quando ele chegava bêbado em casa, as quais Julia tentava esconder a todo custo, mas Mário era o popular, do tipo que falava com todo mundo, mandão, briguento, garoto problema; e nunca deixaria uma garota linda como Julia ficar de canto, isolada.

A amizade nasceu naquele dia, mas eles não perceberam de imediato. Apenas no ano seguinte realmente ficaram grudados um no outro e assim foi pelos próximos sete anos, até o dia em que o pai de Julia, depois de quase três anos sem beber e, consequentemente, sem bater nela, foi demitido, tomou um porre e, mesmo com a filha já com dezoito anos, transformou toda a frustração e raiva que sentia em manchas roxas pelo corpo dela, só porque Julia não havia ajudado a mãe a lavar a louça. Mário e Julia romperam a amizade. Culpa de Mário, que queria a todo custo bater no pai da amiga, dar uma surra, uma lição, matar o desgraçado-filho-de-uma-puta para que este aprendesse a não mexer com a Julia. Culpa dela que não deixou o Mário sequer chegar perto da casa onde ela morava, pois ela amava o pai, que era carinhoso e cheio de amor, que fazia tudo por ela e que só tinha esse pequeno defeito que era altamente compreensível.

Nunca mais se falaram.

Quando transaram pela primeira vez perceberam que tinham nascido um para o outro. Tinha se passado quinze anos da velha briga. Um reencontro inesperado em um sebo no centro da cidade, que fez a saudade apertar um nó cego, que os fizeram se abraçaram como se fosse a última vez, o que levou a mútuos e múltiplos pedidos de desculpas, o que levou a um convite para uma cerveja no boteco ao lado, o que levou a outras e mais outras cervejas, o que gerou uma leve ebriedade, o que motivou o Mário a acompanhá-la até a casa onde Julia morava sozinha e onde tinham varias cervejas na geladeira, algo que ele só descobriu porque Julia insistiu que ele entrasse um pouco e conhecesse a casa que ela montou sozinha, que não os fez perceber que ficaram quatro horas colocando a conversa em dia, tempo em que Julia aproveitou para mostrar ao velho amigo que, após tantos cursos de culinária e anos como chef de um restaurante bistrô num bairro bucólico da cidade, ele tinha todos os motivos do mundo para nunca mais perder contato com ela, que o fez se apaixonar imediatamente pela velha amiga, o que o forçou a convidá-la para saírem dali e irem juntos a uma danceteria bacana, o que a fez querer tomar banho, fazendo Mário usar a velha e chata brincadeira de esfregar as costas da amiga, que ficou sem graça com a ideia, deixando ele perceber que a ideia a excitara, o que o fez ir até ela, puxá-la pela cintura e beijá-la. Transaram. E, logo na primeira transa, toda a velha vontade por violência de Mário encontrou o prazer pela surra que Julia tinha.

Casaram-se um ano depois e nunca mais se separaram, mas os primeiros meses da relação foram incrivelmente difíceis. Culpa de Mário, que no começo fazia o tipo amoroso demais, carinhoso demais, cuidadoso demais, deixando a violência e a virilidade para o sexo, somente. Culpa de Julia, que aprendera que amor vem sempre com boa dose de violência, não só com carinho e cuidado, o que era sinal de virilidade, não só no sexo. Foi em uma discussão que Julia, cansada do marido amoroso e molenga demais, acusou Mário de ser maricas, de não ser homem o suficiente para bater em mulher e afirmou que os tapinhas que ele lhe dava na cama mal faziam cócegas. Foi ali que ele percebeu o quanto Julia sentia falta do pai, morto ao tropeçar no ar enquanto caminhava bêbado pela rua e cair no meio da via para ser atropelado por um caminhão que não teve tempo de frear. Julia tinha vinte anos e nunca mais apanhara.

Naquela mesma noite, a da discussão, enquanto ouvia os gritos quase histéricos da esposa, Mário tomou duas doses de uísque, para tomar coragem e terminar com a briga batendo em Julia com a cinta, deixando a fúria cegar, com força, sem dó, para machucar de verdade, mesmo depois que ela implorava perdão e suplicava para que parasse. Exatamente do jeito que ela queria. Quando ele enfim terminou, Julia, jogada ao chão, chorava de dor e de prazer. Naquela mesma noite Mário descobriu uma Julia serviente, obediente, cuidadosa como nunca fora. Ela nunca mais deixou de apanhar. Passou a ter que esconder os roxos quando andava pelas ruas e encenar indignação e medo quando alguém a aconselhava a ir para a delegacia, denunciar o marido violento.

Na noite em que saíram para comemorar o quinto ano de casados, após um delicioso jantar romântico, com o amor cada vez maior, foram ao Motel. Mário preparara uma surra especial para Julia, com inúmeros e estranhos acessórios, com a ideia de fazer com que ela uivasse como nunca. E foi o que aconteceu. E quanto mais ele batia, mais ela gritava, mais ela berrava, mais ela urrava. E quando Julia finalmente uivou, fazendo o casal gozar junto, numa espiral tão alucinante de prazer, ela desmaiou. De repente, a porta do quarto do Motel foi arrombada e oito policiais invadiram o espaço.

Julia acordou no hospital exatamente no momento em que Mário sentia o cassetete entrar seco pelo seu ânus, depois de apanhar como nunca dos policiais, tudo para aprender como é gostoso o que fazia com a mulher naquele Motel. E enquanto Julia entrava em desespero, gritando ao saber que o marido fora preso e que nunca mais faria mal com mulher alguma, Mário desmaiava de dor para nunca mais acordar. Ela tentou fugir, sair correndo, ir ao encontro dele, queria salvá-lo, queria amá-lo, mas não tinha forças, tudo doía, deliciosamente; não foi difícil o enfermeiro contê-la e anestesia-la.

Julia se matou, enfiando no pescoço um bisturi que acabara de roubar, assim que saiu do hospital e encontrou o batalhão de repórteres de todos os tipos. Enfiou o bisturi no pescoço como resposta ao ser perguntada se sentia alívio ao saber que o agressivo e abusivo marido morrera e não mais a faria mal. Enfiou o bisturi no pescoço pouco depois de entregar para a repórter uma carta que contava o erro de toda a sociedade ao julgar Mário um criminoso. Enfiou o bisturi no pescoço porque, por mais que tenha apanhado durante toda a vida, nunca imaginou ser possível sentir uma dor como a da perda do grande amor da sua vida, a única dor verdadeiramente insuportável.