quarta-feira, novembro 9

Luto ou não

Ela deitou no sofá da sala vazia e escura com as pernas apoiadas no apoio de braço do sofá, para ouvir um velho CD melancólico de Leonard Cohen.
Olhava a lua através da janela, segurando, sobre o peito, uma lata já vazia de cerveja. O cheiro da maconha queimada ainda era facilmente percebido.
Pensou nos filhos, preocupada. Eles gostavam muito do pai. Ficou triste por eles e a tristeza que sentiu por eles não foi tão grande quando a sua própria.
Foram quarenta anos juntos. Tantas brigas, tanta mágoa, tanta traição, tanto arrependimento pelo casamento, pela falta de coragem de sair dali, de enfrentar o mundo, de pedir uma separação. Não esperava, nunca imaginou, que sua morte fosse deixá-la assim, tão triste.
Ele não conhecerá, então, o primeiro bisneto deles, que estava para chegar dali a alguns meses.
Duro demais era enterrar alguém tão querido, quando se descobre que tal alguém realmente era querido somente no enterro.
Se ainda tivesse idade, sairia de casa, ia meter com o primeiro que encontrasse. Ia esquecer o falecido um pouco e foda-se o luto, desde que gozasse um pouco.
Quis pegar outra latinha de cerveja, quis outro cigarro de maconha. Percebeu, viu de fora, a cena deprimente que ela estava produzindo. Uma velha, na idade dela, uma mulher, em qualquer idade, só, em casa, à noite, enchendo a cara de cerveja e a cabeça de fumo.
Tentou uma ducha. Foram trinta minutos embaixo d'água. Quando saiu, Cohen já se calara. Perambulou nua pelo apartamento, até parar na janela, olhando nada, senão o prédio vizinho. O problema da idade nem é o sofrimento da solidão constante, em si. Mas sim, com a morte do sono, saber que o dia nunca termina, apenas une-se a outro por um período de penumbra, ainda mais longo que insuportável.
Ficou na janela, apoiada, até sentir doer seus braços, vincados pela persiana. Colocou então único CD do Paul que ela gostava - sempre preferiu George. O CD era justamente o que falecido mais criticava, achava inferior aos demais.
Tomou dois tranqüilizantes e deitou novamente no sofá, com as pernas no apoio de braço. Ainda teve que esperar alguns minutos para que fizessem efeito. Só então percebeu novamente, depois de tanto tempo sóbria, quão gostosa a vida pode ser, chegando até mesmo a se sentir feliz pela morte do marido.

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