sexta-feira, novembro 11

Dulcéia

A rua toda estava escura. Exceção feita de uma ou outra luz acesa em um ou outro cômodo de algumas poucas casas, onde ainda tinha alguém acordado.
Sua cozinha era um desses cômodos.
Seus três filhos, sua mulher; todos dormiam pesado já. Mas ele não pregara o olho e as costas já começava a doer de tanto olhar o teto do quarto quando resolveu se levantar e se deixar escorregar até a cozinha.
Na cozinha, curtia o silêncio sentado sozinho à mesa antiga, de fórmica branca e pés dourados, com um recorte ao meio para, em caso de necessidade, a mesa fosse aberta e aumentasse de tamanho. Ficou ali, sentado na cabeceira que dava para o corredor, olhando a pia, a sua frente. A mesa ficava bem no meio da cozinha e a pia, no fundo. Ao lado esquerdo da pia ele via a geladeira vermelha, também antiga. Foi daquela geladeira que ele tirou a garrafa de cerveja. Garrafa que estava aberta, sobre a mesa, bem na sua frente. Garrafa das grandes, de seiscentos mililitros, que já estava na metade. Garrafa essa que estava exatamente ao lado de outra garrafa idêntica, porém já vazia. Foi da geladeira também que ele pegou a peça de queijo prato, que comprara na terça-feira. Foi exatamente dessa peça de queijo que ele cortou alguns pedaços pequenos, quadrados, e colocou a sua frente, já salgado, para acompanhar a cerveja.
Fazia uma hora que estava ali, bebendo e pensando na vida. Pensando na falta de sexo. Pensando que, mesmo com cinqüenta anos, ainda tinha tesão, ainda ficava excitado. Pensando que, mesmo assim, já fazia mais de ano que não comia ninguém, menos ainda a própria mulher. E pensando que isso ia muito além do sexo. Seus filhos adolescentes já não paravam em casa, não queriam saber do pai. E sua mulher...
Ele e Dulcéia não eram nada mais além de grandes amigos que moravam juntos e tinham três filhos em comum. E ele não sabia mais como isso foi acontecer, como chegaram àquela situação. Via seu cunhado e sua co-cunhada. Anderson e Solange. Pareciam felizes. Parecia que ainda transavam.
Maldita música que o fez mexer na ferida. Culpa da filha, daquela banda que a filha gosta e que ele não guarda o nome. Ludo-qualquer-coisa.
"O mundo é pequeno sem ter com quem dividir as coisas banais"¹, foi o que disse na música.
E é mesmo. O mundo estava minúsculo e ele sabia que, ali, só tinha a diminuir mais e mais.

No dia seguinte, quando a mulher acordou, ele não estava em casa. Suas cosias não estavam no armário. Na mesa da cozinha, entre do prato vazio onde estava o queijo e as quatro garrafas vazias, um bilhete:
"Dulcéia, eu te amo. Mas meu mundo tá pequeno demais aqui e meu coração não tá agüentando. Fui por aí ver se meu mundo cresce, se meu coração ainda bate. Desculpe."




1 - Trecho da música "Todo ess ar", do disco "O exercício das pequenas coisas" da banda Ludov, lançado em 2004. Letra de Habacuque Lima.

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