sexta-feira, abril 15

E viva PE

Tem uma banda nesse país que eu admiro muito, mesmo sem nunca ter ouvido corretamente. É o Cordel do Fogo Encantado.
Nunca ouvi para me resguardar. Queria me manter intacto e imune de qualquer tipo de conceito pré-estabelecido sobre o trabalho da banda. E mesmo sem nunca ter ouvido atentamente, apenas de relance, o som deles, eu já nutria uma forte admiração. Isso porque eu leio, vejo televisão, sabendo, portanto, o fundamento deles.
E nutria um desejo indescritível de vê-los ao vivo.

Já foram oportunidades extremamente frustradas.
Dessa vez, quase frustra de novo.
Mas eu fui. Debutei num show do Cordel do Fogo Encantado nessa madrugada, no Circo Voador, aqui no Rio de Janeiro. Apesar do sono...

E o que dizer do Cordel?
Que o show é um espetáculo circense-teatral.
Que o Lirinha é o maior ator do Brasil hoje de sua geração, colocando Wagner Moura e sua trupe no chinelo.
Que a poesia de Lira é simplesmente linda.
Que a percussão é perfeita.
Que o Violão é mágico.
Que o fogo é encantado.

Mas uma verdade deve ser dita, uma justiça deve ser feita: tenho plena convicção que sem Chico Science e Nação Zumbi, Cordel não seria o que é hoje. A mistura de poesia, teatro (quem esquece a banda, no princípio, sobre o palco, fantasiada, com uma performance hipnotizadora?) e ritmo pernambucano com privilégios a percussão, indiscutivelmente, é filha e cria de Chico Science e Nação Zumbi.
Agora, saber beber de uma fonte plena, modificar seu conteúdo, sem mexer em sua estrutura e sair ileso disso e ainda conseguir ir além, é coisa para poucos gênios, mestres da arte. E Lira e sua trupe são, sem dúvida alguma, uma turma de gênios. Divindade.

Pernambuco
Já parabenizei Pernambuco aqui uma vez, há alguns meses. Mas devo reafirmar: um estado nos dar as duas bandas que fazem o melhor show que o Brasil pode ver, tão rico culturalmente, não é a toa. Se eu fizer uma lista, inclusive, hoje coloco Chico Science e Nação Zumbi e Cordel do Fogo Encantado no topo, facilmente.

Se Lira é o cara mais cool do Brasil hoje, ele é seguido de perto de Lúcio Maia
Se Nação é a melhor banda do Brasil hoje, eles são seguidos de perto por Cordel.
Se o show do Nação é o melhor do Brasil, então o do Cordel também o é.

O amor comeu
Para finalizar, o ponto alto do show. Lira ousou ficar só, no palco, para declamar uma parte do belíssimo poema de João Cabral de Melo Neto. O poema, declamado, interpretado, devidamente intenso, é a fala de Joaquim, personagem da Poesia "Os três mal amados". Leia. Se você ama, você entenderá o que significa.


"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
"


Obs.: Finalmente poderei ouvir os CDs do Cordel.



Um comentário:

  1. Leo, assim como você, também sou uma apaixonada por Pernambuco.

    Primeiro, porque é a terra do meu pai (meio buarquiano, mas é a pura verdade: minha mãe era paulista, o meu pai pernambucano...).

    Segundo, porque aprendi desde muito cedo, nas minhas férias em Maria Farinha, a apreciar a cultura nordestina, em particular, a pernambucana: frevo, maracatu, cordel, poesia, cuscuz, arrumadinho... e muito mais

    Mas, apesar de todo esse amor, de todos os carnavais curtidos em Olinda... não conhecia o Cordel do Fogo Encantado.

    Tive algumas oportunidades, mas todas perdidas, uma delas foi no Rock in Rio 2001, quando por meia hora perdi a apresentação deles...

    Quando vai ser o próximo show no Rio? Você e Rebbeca já tem companhia certa...

    Beijos com amor pros dois, Rosa

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