segunda-feira, outubro 25

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Versos de Carlos Drummond de Andrade originalmente publicados no livro "Sentimento do Mundo", Irmãos Pongetti - Rio de Janeiro, 1940.

Um comentário:

  1. Putz Léo... o texto anteior está muito bom... Por pouco não utilizei aquele para ilustrar um foto que acabo de postar lá no flog. Acontece que: 1° vc ainda não se manifestou a respeito e 2° acabo de perceber que este aeh tem muito mais a ver com a imagem...
    Um abraço

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