domingo, agosto 19

Diários: Banguela

Hoje eu estreio aqui uma série de textos contatos em primeira pessoa, os quais dei o nome de Diários, por serem fragmentos da vida de pessoas, ainda que desconhecidas e fictícias.


Diários: Banguela

Hoje faz dois meses que a Carmem, mulher, amiga e companheira dos últimos cinquenta e dois anos, nos deixou. Dois meses que eu acordo sozinho na cama. Dois meses preparando meu próprio café, arrumando minha própria cama, organizando a casa e não tendo ninguém do meu lado.
Para tentar sair deste ambiente hostil, repleto desse ar espesso, carregado, que dificulta a respiração, resolvi sair de casa. Aproveitei que precisava regularizar uma documentação pela morte dela e que o Sol não estava tão quente e fui, a pé, para espairecer. O prédio do Ministério Público fica perto de casa, coisa de quarenta minutos de caminhada, só o suficiente para chegar lá sentindo o suor escorrer pela testa, pelo peito e pelas costas, a camisa grudada na frente, na barriga, e atrás.
Dentro do prédio, fiquei parado perto da entrada por uns dez minutos, só sentido o vento gelado, refrescante, do ar condicionado. Cheguei a fechar os olhos sentindo a pele ressecar. Parecia um orgasmo. Um funcionário veio até mim, preocupado, querendo saber se eu estava bem. Sim, eu estava ótimo, obrigado. Aproveitei para perguntar onde exatamente eu regularizava a documentação. Ele explicou. Tinha que subir dois andares, ir à sala vinte e dois, fila sete, e que me atentasse para o atendimento preferencial. Eis um dos poucos benefícios da velhice. Dos poucos. Vejam, os elevadores estavam quebrados e eu já andara por quase uma hora. Agora eram mais quatro lances de escadas. O sedentarismo fez pulsar o joelho. A artrose chegava de mansinho.
No segundo andar, antes de procurar pela sala, achei um banco. Sentei, esperando a dor dar lugar ao fôlego.
O atendimento foi rápido. Não tinha fila. Não para os velhos. Em coisa de poucos minutos, eu estava com o documento regularizado. É bom sentir as coisas funcionando, para variar, mas não vou filosofar sobre isso, nem fazer ligações com minha vida. Uma seção de um departamento público funcionar não significa nada para o funcionamento da minha vida. Nada.
Saí do prédio pela porta lateral, sempre vazia de gente. Todo mundo, não sei porquê, entra e sai pelo portão principal, alto, largo, imponente. Curioso. Contornei o edifício pela sombra e desci pela rampa para cadeirantes, para fugir das escadas, mas senti o ciático incomodar. Merda! Sentei em um banco, à sombra de uma árvore que não dei atenção em descobrir qual, no próprio pátio do prédio, perto do calçamento, ao lado de uma mulher jovem, algo entre vinte e cinco e vinte e oito anos, pele amorenada, cabelos negros, compridos e cuidadosamente alisados, olhos cor de mel e deliciosos peitos com o tamanho suficiente para encher até transbordar uma das minhas mãos. Fixei o olhar nela. Ela lia um livro, não consegui identificar qual. Estávamos há menos de um metro de distância e ela, claro, como eu esperava, não demorou a perceber a inquisição, e devolveu o olhar, talvez, muito provavelmente, para me perguntar, com os olhos, o que era que eu estava olhando. Mas sou um velho simpático, com meus cabelos brancos branquinhos, minhas rugas, meus olhos azuis, minhas bochechas gordas e avermelhadas, meus lábios finos e meus dentes falsos, brancos e lindos de uma dentadura usada para disfarçar a banguela.
- Bom dia, disse eu, sorrindo e olhando fundo nos olhos dela.
Ela sorriu, tímida ou envergonhada do incômodo que sentiu por eu estar lhe olhando, ou também porque, mesmo velho, esse meu olhar sempre me fez conquistar as coisas com certa facilidade. Sou velho, mas a impotência ainda não chegou até mim. Ainda tenho ereções fantásticas e minhas bolas fabricam porra o suficiente. Ela voltou o olhar para o livro. Eu baixei o olhar, para analisar calmamente seu decote. A velhice me permite certas extravagancias. Senti um fluxo maior de sangue em direção ao meu pau. Lembrei-me da Carmem. Suspirei, sentindo a tristeza pousar a mão pesada em meu ombro direito. Olhei o relógio. Ainda não eram dez horas. Precisava fumar. Precisa de um trago, mas para isso, precisaria me levantar e sair para a calçada, coisa que o ciático não permitia. Olho para os lados. Quem irá reclamar que um velho senil acendeu um cigarro? Preso, não vou.
Meu celular toca. É a Rita. Rita é viúva há cinco anos e tem dez anos a menos que eu. Enviuvou cedo, mas também, casou cedo, com um militar, com quem teve um filho homem, que hoje mora na Europa. Sei que apanhava do marido e gostava. Ainda moça, arrancou todos os dentes da boca e botou dentadura. O marido não gostava dos dentes roçando a glande, preferia a mulher banguela. O velho sabia das coisas. Eu experimentei e é bem gostoso, realmente. A Rita conhece bem a arte. E só sei por que depois que o militar morreu, Rita, com certa devassidão, deu para procurar por homens. Virou puta depois de velha. Não a julgo. Entendo. A morte é uma merda. Não, mentira. A morte não é ruim. De maneira alguma. É o fim, enfim, e todos nós caminhamos para ela. Uma merda mesmo é o habito, o costume. A gente se acostuma em ter alguém ali, do seu lado, todos os dias, dia-a-dia, ao acordar, no café da manhã, na janta, para dormir. É uma rotina. Um costume. Até que aquilo vira parte de você, até você precisar daquilo, porque sem aquilo alguma coisa está errada, alguma coisa falta. E isso é a grande merda, na verdade. Essa falta, essa coisa errada. A Carmem me preparava o café preto da manhã, a janta da noite, mantinha a ordem na casa, cuidou dos filhos, dos dois, muito bem, e era simpática, uma ótima companhia. Agora os filhos estão longe, a mulher se foi, e eu naquele apartamento vazio. E é isso que a Rita sente. A falta do militar. É esse vazio que ela tenta preencher chupando e dando para todo mundo que quiser lhe comer.  Porque você passa a tentar de tudo para preencher o vazio, é natural, mesmo sabendo que o ele não se preenche nunca.
Desligo o telefone e levanto com dificuldade. A morena, com certa compaixão, para não dizer dó, vem me ajudar. Desmoralizante, de certa forma, uma morena linda dessas, por quem eu estava tendo sonhos eróticos, vir me ajudar a fazer algo que não consigo por causa da idade. Se ela me viu, em algum momento, com potencial sexual, agora não vê mais. Sou um velho, sou seu avô. Mas aceito a ajuda. Não sou orgulhoso.
Bem em frente ao prédio, tem uns taxis estacionados. Vou com um deles até a casa da Rita. Ela vem à rua me ajudar a descer do carro, me conduz até sua casa, até sua cama, e me coloca sentado. Eu não preciso fazer nada e ela começa tirar minha roupa, como uma profissional. Fico completamente nu. Ela então tira a roupa dela, revelando os seios murchos e a pele flácida. Ajoelha diante de mim, tira a dentadura, e começa o trabalho. Fecho os olhos e penso na morena de há pouco. A Rita é mesmo boa nisso, mas sinto falta dos dentes de Carmem.

6 comentários:

  1. Mas a Carmem também tinha seios fartos?

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  2. A rotina, o costume, nos faz realmente sentir falta dos dentes...

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  3. Seu blog é bom viu Leo? que isso de dó o que :P
    gostei muito desse texto.
    Visitarei mais vezes...
    continue assim, prezando os seus textos. o/
    sucesso sempre.
    beijos

    Amy - Macchiato

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    Respostas
    1. Muto obrigado, Amy (posso te chamar assim, né?)!!!! Fiquei muito lisonjeado.
      Se você quiser pegar um posto para o Macchiato, fique à vontade.

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