quinta-feira, novembro 24

Gritos

"It's really good to hear you screaming"
Foi o que eu li na camiseta dela. Estava pintado a mão, vermelho sangue, como que escrito por ela mesma, na parte de baixo da regatinha branca, quase na borda, no cantinho, e não no centro.
Gostei.
Gostei também do cabelo, nem muito curto, nem comprido. Preto petróleo. Bagunçado. Despenteado. Mas arrumado.
Gostei da cara limpa também.
Fiquei encarando. Olhos negros, bem negros. Pele morena.
Bonita.
Ela olhou encarando-medindo. Olhou o livro na minha mão. Duvido que ela tenha conseguido ler o que era. Eu olhei para a frase e olhei de volta pra ela como quem diz "gostei da frase".
Ela olhou pra frase e olhou de volta pra mim. Sorri. Ela meio-sorriu de volta e se virou.
Então, fiz o óbvio. Cheguei bem perto dela, tirei o fone de um de seus ouvidos e gritei o mais alto e raivoso que pude.
Ela arregalou o olhão com o mesmo meio riso na cara linda limpa. O pessoal em volta, senti pelo vento, assustou e olhou curioso, querendo rir.
Quando parei de gritar, perguntei:
- Foi bom pra você.

É por essas coisas assim que dizem que sou meio louco com as mulheres. E sou mesmo.

Ela caiu numa risada gostosa. Então o semáforo abriu e atravessávamos juntos.
- Topa uma cervejinha ali?
É, o calor estava de fuder.
- Como você chama?
- André e você?
- Anna. Com dois ênes.
Ela parou na calçada e me olhou.
- E aí, 'tá com tempo para uma Original ali?
Ela olhou o relógio que marcava três horas passadas do meio dia, trinta e três graus.
- Talvez. Gosta de música?
Ri.
- Responder certo, breja. Respondo errado, adeus breja? Ah, não! Pára, pára, pára! Se você realmente não quisesse, não tinha perguntado isso.
Ela riu. Gostou.
- E então, gosta?
- Do quê?
- Música, porra!
- Muito. Por quê, caralho?
- Qual o último show que você viu?
- Esquece, porque você não deve conhecer.
- Medo?
- Pelvs.
Ela sorriu seu primeiro sorriso inteiro para mim (gargalhada e riso são diferentes de um sorriso).
- Esse fone toca o quê?
- Jesus and Mary Chain
Puxei-a pelo braço colando minha língua na dela.
- Original ou Bohemia?

O relógio marcava nove garrafas e muitos livros em comum. Saímos do bar.
- Moro ali em cima.
- Onde?
- 'Tá vendo aquele prédio? Ali.
- Papai-mamãe?
- As vezes sim. Mas prefiro você por cima.
Ri meu riso bêbado-frouxo. E tomei um tapa no braço.
- Mora com seus pais?
- Sozinho. Na geladeira, além de cerveja muita, tem uma meia "portuga" de ontem. E você ainda poderá ler meu novo livro.
- Mas nem tente me comer!
- Só se você gritar. Quem sabe eu também adore?
- Não grito para qualquer um.

Ela adorou minha sala com quadros de alguns vinis, como Secos e Molhados, George Harison e Fitzgerald. Chutou as long necks vazias ao lado do sofá. Sentou no puf em frente a tevê. E tirou a regatinha reclamando do calor.

Quando gritou, não gritou, simplesmente. Foi um grito gemido, meio contido, delicioso de se ouvir. Gritou. Eu nunca fora qualquer um.

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