Acordei com dificuldade para abrir os olhos, não pela luz, mas pelo peso que latejava e reverberava em minha cabeça. No corpo, aquela camiseta branca, com uma imagem abstrata, que vesti logo após meu último banho, três dias antes, e onde ainda repousa o perfume dela. Mais que seu perfume, é seu cheiro que me interrompe o pensar. Seu cheiro e seu gosto ocre adocicado do qual sou viciado. Respiro fundo e deixo ela me invadir.
Levanto. Sobre a mesa da sala, uma xícara, onde ainda há café, gelado. Foda-se. Mergulho duas aspirinas dentro e vou para a janela fumar. No prédio em frente, dois andares abaixo do meu, eu consigo vê-la saindo do banho, toalha enrolada no corpo e cabelo molhado. Deus, como ela é gostosa! Sinto meu fluxo sanguíneo se concentrar em seu maior objeto de adoração. Preciso tomar um banho, colocar uma roupa limpa, fazer a barba e ir vê-la. Ela deve ter chegado de viagem há pouco e não me avisou justamente por imaginar que eu estivesse dormindo. Ela some quarto adentro. Ela sempre some.
Quando volta, com o sutiã amarelo que lhe dei e um short preto colado ao corpo, ela para em frente ao grande espelho, onde só enxerga seus defeitos e sente todas as imperfeições do mundo lhe estapeando violentamente o corpo. Passa a mão por onde acha que sobra carne ou qualquer outra coisa inominável. Um pouco mais para baixo, também tem algo a mais, demais. De repente, ela olha para onde acha que falta o que ela mais queria ter e suspira por não poder transferir um pouco do que sobre aqui para onde falta ali.
E então ela acha que deveria ser mais alta, ou mais baixa, não lembro. Respira fundo. Está cansada. É solteira e tem convicção de que o motivo da solteirice é justamente aquilo que o espelho lhe grita. Esquece que eu seria seu capacho com um simples estalar dos dedos.
Ela gira sobre o calcanhar, vai até sua velha vitrola, coloca um vinil de alguma banda de rock dos anos setenta e se deixa cair ao sofá. Seu telefone toca. Sou eu.
- Chegou? Quando? Sei... Nada... Sim, vou! Só vou tomar um banho e comer algo... Claro! Você é linda.
Ligo o computador e coloco a Piaf para cantar.
No banheiro, ligo o chuveiro e, enquanto espero a água esquentar, faço a barba. Pelo espelho, vejo minhas olheiras, minhas rugas e meus cabelos brancos. Estou envelhecendo rápido, mas continuo bonito. Foda-se.
Meus olhos, os olhos dela. Ah, os olhos dela, que aproximam a humanidade inteira a Deus. E sua boca, que relaxa, acalma e me transporta a alguma dimensão onde somente lá eu consigo flutuar até ela me sussurrar qualquer coisa no ouvido, me amputando as pernas para eu não mais conseguir sair do seu lado. Aí ela me abraça, reconfortando-me, e pelo seu toque sou banhado por algum entorpecente alucinógeno no qual me afogo. Sem ar, sinto o sapatear dela sobre meus pulmões. Sapateia com um salto agulha.
Ela sequestrou meu coração e o enterrou atrás de uma árvore cheia de cupins, e segura meu cérebro com suas mãos pequeninas e delicadas. Sua boca então envolve meu pau por completo e eu volto à vida, revigorado.
Nada nesse mundo poderia ser mais sublime, lindo e delicioso que seu toque, seu olhar, sua presença, seu estar ou seu ser.
Ela é um sonho, mas é real. Ela me esgota. Ela me preenche.
Dentro de poucos minutos, eu a possuirei como nunca possuí outra coisa. Mas ela não é minha. Nunca será.
Obrigado, Rê.
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