A amizade nasceu naquele dia, mas eles não perceberam de imediato. Apenas no ano seguinte realmente ficaram grudados um no outro e assim foi pelos próximos sete anos, até o dia em que o pai de Julia, depois de quase três anos sem beber e, consequentemente, sem bater nela, foi demitido, tomou um porre e, mesmo com a filha já com dezoito anos, transformou toda a frustração e raiva que sentia em manchas roxas pelo corpo dela, só porque Julia não havia ajudado a mãe a lavar a louça. Mário e Julia romperam a amizade. Culpa de Mário, que queria a todo custo bater no pai da amiga, dar uma surra, uma lição, matar o desgraçado-filho-de-uma-puta para que este aprendesse a não mexer com a Julia. Culpa dela que não deixou o Mário sequer chegar perto da casa onde ela morava, pois ela amava o pai, que era carinhoso e cheio de amor, que fazia tudo por ela e que só tinha esse pequeno defeito que era altamente compreensível.
Nunca mais se falaram.
Quando transaram pela primeira vez perceberam que tinham nascido um para o outro. Tinha se passado quinze anos da velha briga. Um reencontro inesperado em um sebo no centro da cidade, que fez a saudade apertar um nó cego, que os fizeram se abraçaram como se fosse a última vez, o que levou a mútuos e múltiplos pedidos de desculpas, o que levou a um convite para uma cerveja no boteco ao lado, o que levou a outras e mais outras cervejas, o que gerou uma leve ebriedade, o que motivou o Mário a acompanhá-la até a casa onde Julia morava sozinha e onde tinham varias cervejas na geladeira, algo que ele só descobriu porque Julia insistiu que ele entrasse um pouco e conhecesse a casa que ela montou sozinha, que não os fez perceber que ficaram quatro horas colocando a conversa em dia, tempo em que Julia aproveitou para mostrar ao velho amigo que, após tantos cursos de culinária e anos como chef de um restaurante bistrô num bairro bucólico da cidade, ele tinha todos os motivos do mundo para nunca mais perder contato com ela, que o fez se apaixonar imediatamente pela velha amiga, o que o forçou a convidá-la para saírem dali e irem juntos a uma danceteria bacana, o que a fez querer tomar banho, fazendo Mário usar a velha e chata brincadeira de esfregar as costas da amiga, que ficou sem graça com a ideia, deixando ele perceber que a ideia a excitara, o que o fez ir até ela, puxá-la pela cintura e beijá-la. Transaram. E, logo na primeira transa, toda a velha vontade por violência de Mário encontrou o prazer pela surra que Julia tinha.
Casaram-se um ano depois e nunca mais se separaram, mas os primeiros meses da relação foram incrivelmente difíceis. Culpa de Mário, que no começo fazia o tipo amoroso demais, carinhoso demais, cuidadoso demais, deixando a violência e a virilidade para o sexo, somente. Culpa de Julia, que aprendera que amor vem sempre com boa dose de violência, não só com carinho e cuidado, o que era sinal de virilidade, não só no sexo. Foi em uma discussão que Julia, cansada do marido amoroso e molenga demais, acusou Mário de ser maricas, de não ser homem o suficiente para bater em mulher e afirmou que os tapinhas que ele lhe dava na cama mal faziam cócegas. Foi ali que ele percebeu o quanto Julia sentia falta do pai, morto ao tropeçar no ar enquanto caminhava bêbado pela rua e cair no meio da via para ser atropelado por um caminhão que não teve tempo de frear. Julia tinha vinte anos e nunca mais apanhara.
Naquela mesma noite, a da discussão, enquanto ouvia os gritos quase histéricos da esposa, Mário tomou duas doses de uísque, para tomar coragem e terminar com a briga batendo em Julia com a cinta, deixando a fúria cegar, com força, sem dó, para machucar de verdade, mesmo depois que ela implorava perdão e suplicava para que parasse. Exatamente do jeito que ela queria. Quando ele enfim terminou, Julia, jogada ao chão, chorava de dor e de prazer. Naquela mesma noite Mário descobriu uma Julia serviente, obediente, cuidadosa como nunca fora. Ela nunca mais deixou de apanhar. Passou a ter que esconder os roxos quando andava pelas ruas e encenar indignação e medo quando alguém a aconselhava a ir para a delegacia, denunciar o marido violento.
Na noite em que saíram para comemorar o quinto ano de casados, após um delicioso jantar romântico, com o amor cada vez maior, foram ao Motel. Mário preparara uma surra especial para Julia, com inúmeros e estranhos acessórios, com a ideia de fazer com que ela uivasse como nunca. E foi o que aconteceu. E quanto mais ele batia, mais ela gritava, mais ela berrava, mais ela urrava. E quando Julia finalmente uivou, fazendo o casal gozar junto, numa espiral tão alucinante de prazer, ela desmaiou. De repente, a porta do quarto do Motel foi arrombada e oito policiais invadiram o espaço.
Julia acordou no hospital exatamente no momento em que Mário sentia o cassetete entrar seco pelo seu ânus, depois de apanhar como nunca dos policiais, tudo para aprender como é gostoso o que fazia com a mulher naquele Motel. E enquanto Julia entrava em desespero, gritando ao saber que o marido fora preso e que nunca mais faria mal com mulher alguma, Mário desmaiava de dor para nunca mais acordar. Ela tentou fugir, sair correndo, ir ao encontro dele, queria salvá-lo, queria amá-lo, mas não tinha forças, tudo doía, deliciosamente; não foi difícil o enfermeiro contê-la e anestesia-la.
Julia se matou, enfiando no pescoço um bisturi que acabara de roubar, assim que saiu do hospital e encontrou o batalhão de repórteres de todos os tipos. Enfiou o bisturi no pescoço como resposta ao ser perguntada se sentia alívio ao saber que o agressivo e abusivo marido morrera e não mais a faria mal. Enfiou o bisturi no pescoço pouco depois de entregar para a repórter uma carta que contava o erro de toda a sociedade ao julgar Mário um criminoso. Enfiou o bisturi no pescoço porque, por mais que tenha apanhado durante toda a vida, nunca imaginou ser possível sentir uma dor como a da perda do grande amor da sua vida, a única dor verdadeiramente insuportável.
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