quinta-feira, fevereiro 21

Ponte aérea cultural

Viver na ponte aérea Rio - São Paulo, de coqueluche, não tem nada. Ambas, há muito, já perderam o glamour de antes. A da garoa ganhou trânsitos homéricos e chuvas torrenciais que a alagam por completo. A maravilhosa, de orgulho, parou para se admirar e quando abriu os olhos já estava tomada pelo tráfico, pela violência e pela injustiça social mais aguda. Para completar, ultimamente, foi a ponte aérea em si que se desgastou. Os vôos, de cinqüenta minutos, passaram a ser de três, quatro horas, sendo quase todo esse tempo gasto no saguão de embarque.
Mas como tudo o que está ruim sempre tende a piorar, para mim a ponte aérea traz outro incômodo: a confusão cultural (agravada pela idade).
Se metade de meus livros, CDs e DVDs está em cada ponta da ponte, nunca sei qual ou o que está onde e quase sempre me pego querendo assistir aquele DVD ou querendo reler aquele livro que está na outra cidade (que só descubro estar na outra cidade depois de procurar muito). Um absurdo. Se resolvo pegar um CD e mudá-lo de cidade para ouvir enquanto estou nela, quando volto para a outra cidade bate-me a desilusão de não mais poder ouvi-lo. Desesperador.
Pois agora ganhei um novo problema. Tenho um endereço de e-mail que uso apenas para cadastrar em sites de lugares para ir, eventos culturais para se fazer, informativos para se receber. Até aí, inteligente de minha parte, pois recebo muitos desses e-mails e ter um endereço só para eles me auxilia na administração do mesmo. A merda é que já não sei mais se o evento cultural é em São Paulo ou no Rio, e quando sei, vejo que a cidade em que não estou sempre tem um algo para ir que é mais interessante. Agora mesmo, estou em São Paulo e acabo de ver os e-mails das baladas desse final de semana em ambas as cidades. Promete. Logo de cara, uma me chama a atenção: nesse final de semana tem Cachaça Cine Clube com Jards Macalé. Imperdível!! Fui seco no e-mail para ver a data exatamente e... Esqueci, é no Cine Odeon, no Rio. Bosta!
Pelo menos São Paulo também promete. Tem Ludov na Outs, Anjo dos Becos no Inferno e Mallu Magalhães, ela mesma, no Studio SP. Bonito, lindo. Mas como a piscina do vizinho está sempre com uma morena mais gostosa...

segunda-feira, fevereiro 18

Almoço


Ah, o arroz da minha avó...
Tem mais que gosto de infância, mais que gosto de arroz bem feito, mais que gosto de arroz do interior, arroz caipira.
Nenhum é tão bom. Dá até para comer de colher, como o fiz com praticamente todo arroz que acabara de me servir.

sexta-feira, fevereiro 15

O espelho

Eles se conhecerem há trinta anos, no limiar da idade madura de cada um. Não descrentes do amor, mas descrentes de qualquer tipo de relacionamento possível, nem mesmo amizades. E não era amargura, ressentimento ou qualquer algo que os fizessem pensar assim. Era apenas os anos vividos, o ápice atingido ali, perto do limiar da idade.
Ele vinha de um relacionamento mergulhado em amor. Ela vinha de um relacionamento resfriado pelo tempo e pelo ressentimento. Não enjoaram de seus antigos parceiros, apenas perceberam quão egoísta o ser humano realmente é, ao fundo, a ponto de necessitar mais tempo consigo que com outrem, a ponto de procurar sempre alguém tão como si mesmo. E foram, cada qual a seu tempo, a se modo, viver consigo e com todos.
Mas, num descuido do destino, conheceram-se.
Descobriram o quanto do outro havia em si. Muito mais, até, que de si no outro, fato que explodiu num tesão sem igual. E, apesar da determinação de não mais namorarem, fuderam-se um ao outro como nunca haviam feito antes com ninguém. Eram noites e dias seguidos trancados num quarto de hotel, com alimentação precária, não se importando para a vida lá fora, para emprego, para amigos, nada. Mas estavam resolutos em não entrarem em relacionamento algum.
...
Casaram-se.
...
Hoje, no supermercado, quando ele entrou por um corredor e deu de cara com ela, trinta anos depois de tudo aquilo, ambos paralisaram. Sentiram o frio na espinha, o rubor facial, o medo inseguro adolescente, o gélido suor, a falta de palavras. Ficaram ali, parados, encarando-se por alguns poucos eternos segundos. Cumprimentaram-se num misto de cordialidade, desespero, intimidade. Ele carregava uma cesta com poucas coisas, ela um carrinho carregado e uma criança a tira-colo. “Meu neto”, disse ela. Ele assentiu com a cabeça. “Bom lhe reencontrar depois de... faz o quê?”, perguntou ele, apesar de muito bem saber. “Trinta anos”. Ele não segurou uma lágrima. Despediram-se silenciosamente.
Ela segurou a ininterrupta dor latejante durante a fila do caixa e voltou para casa, com seu neto. Ele não finalizou as compras e foi direto para um boteco encher a cara.