Ela estava com vontade de matar alguém. Uma morte lenta e
dolorosa, mas ainda assim, extremamente violenta. Saíra de uma reunião tão
estressante, que Buda algum teria mantido a calma e o sorriso falso no rosto da
forma como ela conseguiu. Claro que a vontade de matar era pura figura de
linguagem, mas certamente a necessidade pelo cigarro, não. Como pode algum
cliente interno se fingir de burro de forma tão exacerbada como aquele calhorda
fez, só para ganhar tempo, para disfarçar a total incompetência para finalizar
ou ao menos dar um mínimo de andamento ao projeto? Ou, pior, como uma pessoa
tão burra como ele, caso não estivesse fingindo, ainda conseguia um emprego? Desceu
correndo pelas escadas. Não aguentaria ficar esperando o elevador.
No térreo, saiu pelo estacionamento. Não queria ficar de
conversa com ninguém. Só queria fumar. Acendeu o cigarro, deu a primeira e
deliciosa tragada, que a fez sentir a nicotina correr por suas veias, e sentiu
o celular vibrar em seu bolso.
“Oi, Sra. Cassia.”
Caralho! Não era possível! Não era possível! Não era
possível! Como esse canalha consegue? A raiva e a frustração pela reunião se
misturaram ao êxtase do momento que o cigarro trouxe junto com aquele singelo
e certeiro “oi” e seus olhos se encheram de lágrimas. Canalha safado! Como ele
consegue ser tão certeiro e sempre mandar a mensagem na hora que ela mais
precisa? Fosse ela paranoica, teria certeza que estava sendo seguida. Mas além de não ser nada paranoica, ela sabe
que ele não faria esse tipo de coisa. Respirou fundo.
“Oi, Caio. Como você consegue?”
Eles se conheciam desde a infância. Seus pais trabalhavam
juntos desde a juventude e eram tão amigos que não só ela é afilhada do pai do
Caio, como ela não se lembra de ter ficado uma semana completa, ao menos até o
final da adolescência, sem que visse seus padrinhos – e o Caio,
consequentemente. Estavam sempre na casa um do outro. Eram quase parentes. E,
assim, durante toda a adolescência, enquanto Caio se transformava em um homem
lindo, divertido, inteligente e gostoso, ela, como seria natural para uma
menina quase seis anos mais nova, descobriu nele a grande paixão platônica de
sua vida, por mais errado que este sentimento fosse.
“Consigo o quê?”
Como poderia uma menina de 14 anos, por exemplo, por mais
sucesso que fizesse na escola, não só entre os meninos de sua classe, pensar em
ter algo com seu quase-primo de 20 anos, que estava na faculdade cercado por
mulheres maduras e tão ou mais lindas que ela própria? Ainda mais se ele sempre
a tratou como prima-irmã, claramente não vendo nela uma mulher.
“Você sempre acerta os momento... Tudo bem?”
Só que ela não sabia que, desde quando ela tinha seus doze
ou treze anos e começou a desabrochar nela uma feminilidade lasciva, Caio se
deliciava com sua beleza, adorando fazê-la rir de suas piadas. E ela nunca
saberia, não fosse uma daqueles constantes viagens à chácara que seu padrinho
tinha, que ficava há uma ou duas horas da capital, onde sempre faziam
churrascos, onde passavam a tarde na piscina, onde os adultos bebiam até caírem
no sono ao final do dia Ela nunca vai esquecer .
“Ah, Cassia, você esquece que você é minha? Eu não adivinho,
eu sei quando você precisa de mim: o tempo todo.”
É, ele sabe. Desde
que aquele que deveria ter sido só mais um final de semana na chácara, que
ficaria perdido na memória, misturado a tantos outros iguais. Mas naquele final
de semana no meio de Julho, com o frio lhe abraçando por completo, sem piscina,
sem tanto humor, quando tudo tinha que ser tedioso para uma jovem de dezoito
anos, cheia de vida, vendo todos acabarem com garrafas e mais garrafas de vinho
ao redor da fogueira, sem mais nada para fazer, ele fez tudo mudar, tudo ficar
diferente, tudo ficar especial e mágico com um simples “vem aqui comigo” dito
tão furtivamente no começo da noite, tirando ela do meio dos adultos sem que ninguém
se importasse com isso, sem que ela esperasse por nada de diferente
“Ah, seu ridículo! Não
inverta as coisas, não. Você que não vive sem mim!”
O vento gelado na piscina escura, o frio que corta a pele, a
fuga para atrás da casa de máquinas, o suave empurrão que colou as costas dela
contra a parede, a respiração, olhos nos olhos, aqueles olhos hipnotizantes,
aquela boca tão desejada e o beijo. Ah, o beijo. O mais gostoso e esperado
beijo da vida de alguém. O beijo mais errado possível, o segredo mais bem
guardado, o ato mais gostoso, a sensação que faz vibrar o corpo inteiro toda
vez que é repetido. Tudo daquele dia e de todos os outros dias são tão
inesquecíveis, que foi pensado e lembrado inclusive durante os dois casamentos.
Seu telefone tocou. Era ele. Sim, ela também o tem ele na
palma das Mãos e ela sabe muito bem.
“Oi.”
Ele riu a risada mais gostosa do mundo, a risada pela qual
ela se apaixonou ainda criança.
“Me conta como alguém viveria sem você?”, ele perguntou.
Ela riu.
“Ah, fácil. É só casar com minha melhor amiga.”
“Ah, é para pegar pesado?”
Ela ria, nervosa e relaxada ao mesmo tempo.
“Você não tem ideia do que foi ficar no altar vendo você casando
com a Débora.”
“E você não tem ideia do que foi casar com outra mulher
vendo você no altar. Você não devia ter aceitado ser a madrinha dela.”
“Sim, verdade, eu devia ter falado ‘amiga, desculpe, não
posso ser a madrinha porque seu noivo é o grande amor da minha vida e eu sou o
grande amor da vida dele’. Você tem razão”, ela disse cheia de ironia.
Ele riu:
“Foda.”
“É, foda.”
“Mas mais foda foi você me chamar para ser padrinho do seu
filho.”
Ela gargalhou alto, já sem o mínimo sinal do estresse que a fez
descer para fumar.
“Já que você não pôde ser o pai...”
Ele riu, novamente:
“Sua filha da puta!”
“Também te amo, Caio.”
“Porra, preciso te ver hoje.”
Ela sorriu tanto que ficou nítido em sua voz.
“Hoje é impossível. O Rodrigo vai me levar no cinema.”
“Vou te esperar na saído do seu trabalho. Depois você vai
ver seu marido.”
“Tá bom. Eu saiu às dezessete e trinta”, disse submissa.
“Eu sei, boba. Vou chegar antes até. Dezessete e vinte estou
na portaria. Estou levando as algemas. Até mais tarde. Beijão.”
Riram.
“Beijo”, ela se despediu.
O coração disparou como quando ela tinha 18 anos. Puta
merda. Puta merda. Que delícia!
Ela acendeu outro cigarro.
Não é fácil se despistar de alguém, quando o alguém é a
pessoa certa, a pessoa que te deixa entregue e confortável. O desejo é tão
forte e é tão fácil falar sim, que precisa se esforçar para não ficar que nem
brinquedo. E não há nada mais gostoso que se deixar ser um brinquedo na mão do
tal alguém.
Voltou relaxada para sua mesa e foda-se se alguém tentar
estressar ela.
___
O relógio marcava dezoito horas e treze minutos. Cassia marcou com seu marido de se encontrarem
no cinema às dezenove horas, para comerem algo ante da sessão das 20h15. Por
sorte, o cinema ficava a dez minutos de seu trabalho. Mas... Cadê o Caio?
Já fazia quarenta e cinco minutos que ele devia ter chegado.
Já fazia quarenta e cinco minutos que ela esperava sentada em um banco, na
calçada em frente à portaria do prédio em que trabalha. Suas tentativas de
contato eram frustrantes. Era falta de sinal ou celular desligado? Ela
precisava saber dele!
___
Caio realmente devia ter chegado. Às dezessete horas em
ponto, ele desligou o computador. Em cinco minutos, ele estava de jaqueta e
capacete, sentado sobre sua moto. Mas quando ele ligou o motor, Rodrigo, o
marido da Cassia apareceu à sua frente. Um frio na barriga, a certeza que ele
sabia de tudo. Moto desligada, capacete tirado.
“Caio”
“Rodrigo? Cara, tudo bem? O que você está fazendo aqui?”
“Não sei. Não sei. Você tem algum compromisso agora?”
“Tenho. Estou indo encontrar sua mulher para dar ao menos um
beijo nela antes do cinema de vocês. Se der tempo, um motel rapidinho não está
fora dos planos”, pensou Caio, que riu com seu pensamento.
“O que foi?”
“Não, nada. Desculpe. É que eu estou para comprar um tapete
que a Anna tem me pedido há dias, enchido o meu saco, e eu sempre tenho uma
desculpa. Eu prometi hoje para ela que compraria...”.
Toda boa mentira tem que ter uma verdade absoluta como base.
“... mas de verdade, um tapete não é prioridade se você,
compadre, precisa de mim. O que foi?”
Caio estava tenso e preparado para se esquivar de um soco.
Punhos fechado, músculos tensionados, mas disfarçava com um sorriso nos lábios.
“Ah, desculpe. Eu não sei. A Cassia... Tem alguns dias que
ela está diferente. Alguns muitos dias. Eu não sei, mas como você é o mais
próximo de irmão que ela tem, acho que, sei lá... Mas não precisa ser hoje.
Podemos marcar? Amanhã ou depois de amanhã, você escolhe o dia.”
“Ei, calma, meu amigo. Calma. Não vamos ‘marcar’ porra nenhuma. O dia é hoje. O momento é
agora. Vamos”, Caio desceu da moto. “Vamos tomar um cerveja ali na esquina para
conversar.”
“Não quero te prejudicar com a Anna...”
“Relaxa. Ela vai entender. Vou até deixar o celular desligado
para ela não perturbar.”
Entre cervejas, o Rodrigo desabafou uma suspeita de traição.
Por isso até que ele a chamou para o cinema hoje, que saíram para jantar noite
retrasada e tem procurado reconquistar a esposa. Depois de seis anos de
casados, ela anda fria, ausente... Infeliz. A palavra certa era esta: infeliz. Fazia
algumas semanas que não se tinha mais a risada gostosa dela, o lindo sorriso,
nem ao menos o brilho incrível do olhar. Rodrigo começo ficou preocupado, mas
ele percebeu alguns sinais que o deixou desconfiado, como o esmorecimento
nítido no semblante dela o dia que ele foi busca-la no trabalho, com um
presente e um convite para jantar.
Caio tratou de demonstrar o choque, real, sobre o assunto.
Ele nunca imaginou que sua amada estivesse infeliz. Seria culpa dele? Seria por
ele? Como iria resolver isso, caso fosse? Ele faria qualquer coisa pela
felicidade dela, mas, como? Iriam os dois se separar? E os filhos? Ele não quer
se separar do Pedro, seu filho de quatro anos e tem certeza que Anna não
facilitaria sua vida. Mas é ainda pior. E os amigos? E seu pai? E os pais dela,
como ficariam? Como ficaria a amizade dela com Anna? O Rodrigo, coitado, como
iria enfrentar essa situação? Caralho, se fosse isso mesmo, a felicidade dela,
e dele também, claro, só existiria com a destruição de muita coisa, de muita
gente que não tem a menor culpa por eles terem deixado a situação evolui até onde
está. Por que casaram com as pessoas erradas? Eram mesmo as pessoas erradas? Por
que se permitiram ter filhos com estas pessoas? Por que não se assumiram desde
o primeiro beijo? Por que ele foi tão imbecil em relação a isso a vida toda?
A cabeça de Caio girava enquanto ele tentava convencer o
Rodrigo que a Cassia não faria isso. Não a Cassia que ele conhece desde que ela
nasceu, não a Cassia que o faz suar as mãos tensas quando está ao seu lado, não
a sua Cassia. Deveria ser o trabalho. Deveria ser algum outro problema. Ele
iria conversar com ela.
___
Era dezoito horas e quatorze minutos quando Caio se despediu do Rodrigo, após acertarem
que o ideal seria que ele, Caio, começasse a dedicar mais tempo à Cassia,
saindo com ela ao menos uma vez por semana, para tentar não só descobrir o que
está errado, mas, principalmente, para ajudar a reanimá-la.
Caio ligou o celular. Três chamadas não atendidas. Duas de
Cassia e uma de Anna. Telefonou imediatamente.
“Oi, meu amor, me desculpe. Me perdoe. Você não vai
acreditar quem apareceu aqui e me chamou para uma conversar de quase uma hora e
meia: seu marido.”
Ele nem pensou em ligar para sua esposa. Não era prioridade.
Caio, então contou para Cassia toda a conversa, detalhe por
detalhe, antes de perguntar:
“Cá, nossa distância está lhe fazendo infeliz? É essa nossa
situação que está lhe deixando assim?”
Cassia riu, nervosa.
“Infeliz?”
“É. O Rodrigo não teria como errar.”
Ela realmente andava desanimada, sem ânimo, estressada, mas
não sabia por quê. A correria do dia a dia, trabalho, filho marido... Não tinha
tempo para se preocupar com isso.
“Meu amor, tem tanta coisa na vida para me deixar assim. Não
se preocupe. O importante é que agora vamos nos ver todas as semanas, certo?”
“Claro. Mas não é o bastante. Eu quero você feliz. É isso
que importa, na verdade, você feliz.”
Ela sorriu.
“Meu amor, vendo você todas as semanas, estarei ótima!”
“Não. Sua felicidade não deve depender de um encontro
semanal com ninguém.”
“Lindo, a bateria está acabando, mas você está errado. O que
importa são nossos filhos, nossos cônjuges, as pessoas ao nosso redor. É o que
importa e a gente vai ter que conviver com isso.”
“Não. Temos que encontrar algo melhor, alguma forma de...”
“Cá, meu amor, eu estou presa em um casamento horrível.
Presa. E não pelo meu filho, não pelo seu afilhado. Estou presa pela relação
que tenho com toda a família do Rodrigo, pelo o que eu represento para eles,
para ele... Claro que meu filho também faz parte disto, mas filho não segura
casamento. O resto todo à minha volta, não sei, mas talvez sim! Então, temos que
aprender a conviver com isso, certo? Alô? Caio?”
Sem bateria no celular, sem o Caio naquela noite, tudo que
restava a ela era seu marido e uma sessão infeliz de algum filme que ela não
ligava qual, tudo que restava a ela era sua vida, real, pungente, vazia e
infeliz.